Artigo: Atlantis - Revista de bordo - TAP Portugal - 1986

Fonte: Jogo do Pau Português

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  • Relevância: ★☆☆
  • Título: Enquanto o Pau vai e vem
  • Autor: Rui Claro em «Atlantis - Revista de bordo - TAP Portugal»
  • Publicação: 1/86 Fevereiro/Abril, distribuição gratuíta

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« (...) Lamentável é dizé-lo, mas desde sempre o Homem teve que se defender Animais e homens selvagens eram uma ameaça, pondo em risco de vida os mais incautos ou desprevenidos.

Conscientes, os nossos antepassados trataram de obviar. Traumatizados, reconheceram que usar a força quetinham não era mau, mas que ampliá-la era melhor. E recorreram ao que linham à mão em abundância pedras e paus. (Dai o dito ainda vigente "dar por paus e por pedras”).

A pedra tinha um inconveniente: uma vez arremessada, deixava-o desarmado. O pau não. Sempre à mão, fácil de arranjar (nos primórdios todos os homens eram da provincia, se assim posso dizer), qualquer árvore lho facilitava. Portátil, era, nos intervalos, atrimo para descansar, ajuda nas veredas asperas, ponto de apoio para pular cursos de agua. Como hoje dizemos, mulifuncional. Com a seu aspecto inocente e bucólico, era tão útil no quotidiano como na luta. Ocioso será acrescentar que todos os povos, em todo o mundo, o usaram e aqui e ali ainda usam.

Os mais atentos e curiosos usavam e observavam. Os paus que partiam ou lascavam com facilidade, coisinhas sem nervo e de pouca garantia. foram eliminados. Ficaram os de marmeleiro, castanheiro, freixo, carvalho, salgueiro e o melhor, porque mais resistente, maleável e leve, o lódão. Mas em caso de necessidade, nada de esquisitices, qualquer pau serve, é bom lembrar.

Notaram também esses nossos avós coriáceos que, se à força da pancada bruta fosse acrescentada uma pitada de astúcia e uma dose de surpresa, o efeito seria uma desagradável constatação por parte do adversário. E nasceram as técnicas. Conhecemos várias, na India, China, Coreia, Japão, Tailândia, Vietname, Afeganistão, Itália, França, Inglaterra, Portugal, que são como que, com as suas diversas peculiaridades, diferentes sotaques de uma mesma lingua.

Os povos mais distraídos, que nunca se deram inteiramente conta das vantagens dessa arma de ar inocente, sentiram na sua pele a sua distracção.

Na pele, nos ossos, nos músculos, que uma paulada, não deixando saudade, deixa uma perdurável memória por equimoses, hematomas, fracturas, contusões, escoriações, ou apenas emblemáticas nódoas negras, olá! Em Portugal, o jogo do pau nasceu no Minho, não se sabe quando.

D. Duarte, o Eloquente, no seu “Leal Conselheiro", dava aos golpes de montante os mesmos nomes que os minhotos às pauladas, por aí já se vê.

Do Minho, o jogo do pau espalhou-se pelas Beiras e Trás-os-Montes.

Arma plebeia e temível, o cacete resolveu contendas, sanou conflitos, isto doseadamente, machucando um pouco ou mais que um pouco, fractu- rando apenas, ou matando por acidente ou sentença do "puxador" tendo em conta a gravidade da questão e os percalços da luta. Regra, só uma: nunca se atacava um adversário que não trouxesse pau. E ainda hoje é conhecida a famosa "justiça de Fafe", cujo brasão é, adivinharam um cacete. Com as migrações para a capital, os homens do Norte trouxeram o conhecimento do jogo, que se espalhou pela Estremadura e Riba- tejo e se enriqueceu ai com os "sarilhos" nascidos na borda d'Água. Lisboa deu o seu contributo, acrescentando ao jogo os "cortes" e "recortes" e praticava nos "quintais", com os seus mestres, os seus estilos, os seus segredos, os seus ídolos e vedetas.

Mais tarde entrou para os ginásios onde ainda hoje se pratica.

Pelos anos 30, a prática do jogo do pau declinou. O "varrer das feiras" era um facto constatável, os estragos e danos inerentes eram visíveis, as rixas violentas acontecimento comum, morto resultante coisa prevista. Aí o policiamento começou a ser mais eficaz, vieram as armas de fogo que resolviam as questões num ámen e sem a demora da longa aprendizagem, além dos desportos importados que o nosso snobismo adoptou, está bem de ver. Hoje, em que um débil e envergonhado orgulho nacional lança umas débeis e envergonhadas vergônteas, o jogo do pau parece querer reviver. Os praticantes vão aparecendo, mestres competentes ainda os há e paus vamos tendo com fartura, graças a Deus.

O objectivo já não é varrer feiras ou ajustar contas, mas aprender e dominar técnicas, educando a mente e o corpo, desenvolvendo capacidades de atenção, decisão, rapidez, oportunidade e reflexos. É praticar um desporto nosso, viril e variado, que requer do praticante destreza e conhecimento e lhe vai permitir enfrentar um ou vários adversários simultaneamente, libertando agressividades sem perigo para ninguém. Catártico.

É afinal a preparação ética para o dia a dia, que de ética por vezes tem bem pouco. Há que andar a pau. »

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