Artigo: Desportos Revista 1983

Fonte: Jogo do Pau Português
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  • Relevância: ★★★
  • Título: O Jogo do Pau
  • Autor: Nuno Russo
  • Publicação: Desportos Revista - Direcção-Geral Dos Desportos, 1983, pp. 8-11

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« Um pouco de história

O Jogo do Pau português também conhecido por «ESGRIMA NACIONAL», é uma arte de luta tipicamente portuguesa em que a arma é um simples pau direito e liso, aproximadamente da altura de um homem, e manejado adequadamente por cada um dos contendores, que com ele procuram, por um lado, atingir o ou os adversários e por outro defender-se dos golpes por estes desferidos.

Esta arte de luta, cuja origem remonta aos primórdios da nossa nacionalidade, teve o seu berço no norte de Portugal, mais concretamente no Minho,onde começou por ser uma técnica de defesa e ataque, própria das gentes e da cultura campesinas. Daí se expandiu para Trás-os-Montes e mais tarde para o Sul, onde também se veio a fixar, principalmente na Estremadura e Ribatejo.

Nestas regiões rurais o pau,varapau ou cajado, fazia (e por vezes ainda faz) parte da indumentária normal do homem do campo, associado essencial-mente às suas deslocações a pé ou a cavalo como companheiro e apoio, e sobretudo como arma elementar para se defender de eventuais agressões de outros homens ou animais. Com ele se resolviam todos os problemas diários que provinham sobretudo de rivalidades entre aldeias, de namoros, desvios de aguas de irrigação, etc. Raras eram as vezes ( sobretudo no norte do País ) que as feiras ou romarias não terminassem com paulada entre moços de freguesias diferentes ou pior ainda se envolvessem em desavenças aldeias inteiras,que se defrontavam em combates sangrentos e até mortais.

Este facto de o povo saber manejar o pau foi uma riqueza que serviu a nossa História não só em lutas internas – na revolta da Maria da Fonte, nas lutas entre liberais e absolutistas – mas também em defesa contra o invasor como aconteceu quando as tropas francesas pretenderam invadir Portugal entrando pelo Minho.

Só no final do século passado o Jogo do Pau se implantou em Lisboa. Aqui, sob condicionalismos muito diferentes dos da província, o «espírito» deste nosso Jogo altera-se. Liberto que está dos imperativos de luta que o acompanhavam nas origens em época e região, vemo-lo agora virado para o aspecto desportivo e ser praticado em Salões e Ginásios. Destes, o primeiro a introduzir a prática do Jogo do Pau como desporto foi o Real Ginásio, hoje Ginásio Clube Português. Esta transformação do Jogo do Pau bélico em Jogo Desportivo iniciada na capital, estendeu-se com o tempo a todas as escolas do norte e sul do Pais.

Mas apesar desta transformação bem como das pequenas diferenças técnicas existentes entre as várias escolas, o Jogo do Pau português continua a manter intacta toda a pureza da sua prática original.

Descrição técnica:

A) «TÉCNICA DE BASE» Constituída por:

ATAQUES – Sete ataques de base desferidos aos lados esquerdo e direito do adversário: dois «ENVIEZADOS» (desferidos de cima para baixo),dois «REDONDOS» (paralelos ao chão), dois «ARREPIADOS» (atacam de baixo para cima),uma «PONTA» (PONTUADA ou ESTUCADA) normalmente directa a cara ou ao plexus solar.

Todos estes ataques são feitos aproveitando o comprimento total do pau, e todos eles, salvo a «PONTA» são feitos em «ROTAÇÂO» (aproveitando o balanço da parte mais grossa do pau que é a que bate). Também todos eles podem ser feitos com uma ou com as duas mãos. Neste último caso a distância entre as duas mãos deve ser igual ao tamanho do antebraço do jogador que segura o pau;

DEFESAS – Sete defesas (GUARDAS ou COBERTAS) de base «RIJAS» (aquelas que oferecem resistência às pancadas do adversário) para cada ataque. Estas defesas podem ser feitas directamente sacudindo o pau do atacante ou em rotação varrendo as pancadas, e neste caso são chamadas «VARRIMENTOS» (aquelas em que se opõem às pancadas do atacante outras pancadas em sentido contrário);

SARILHOS – Exercícios provenientes de defesas antigas,que têm por fim aumentar a facilidade no manejo do pau, adquirir coordenação entre os movimentos do pau e das pernas, e ensinar o principiante a bem pisar o terreno.

B) «TÉCNICA AVANÇADA» Constituída essencialmente por:

GUARDAS BRANDAS – Aquelas em que se aproveita a forçada pancada do adversário em favor do nosso contra ataque(muito rápido e de difícil controlo);

GUARDAS SIMULADAS – Aquelas em que se recolhe o pau à pancada do adversário,para esta passar sem ser tomada;

CORTES – Pancadas destinadas a prejudicar activamente o efeito da outra pancada que não foi defendida com uma guarda;

GUARDAS AVANÇADAS – Defesas entrando no terreno do adversário debaixo do ataque daquele (para a execução destas guardas com eficácia é necessário alto nível técnico);

CORTES ANTECIPADOS – Percepção mental do ataque do adversário contra-atacando antecipadamente (exige nível técnico superior, Este tipo de cortes não são usados em combates desportivos visto serem dificilmente controláveis quando executados correctamente).

C) «JOGO TRAÇADO»:

Técnica usada especificamente em distâncias muito curtas em que não há possibilidades de se aproveitar o comprimento total do pau mas pelo contrário, conseguir o máximo de eficácia com um comprimento mínimo de pau.Caracteriza-se essencialmente por:

a) O pau ser seguro a meio com as duas mãos afastadas, usando-se ambas as pontas livres (a fina e amais grossa) indiferentemente para atacar ou defender.

b) Os ataques e as defesas são muito semelhantes e são feitos directamente e não em rotação.

c) As defesas são sempre «RIJAS» e feitas em sentido contrário aos ataques.

De capital importância é a questão do chamado «CONTROLO» do ataque visto ser este jogo praticado até ao momento sem qualquer protecção artificial. Esse «CONTROLO» usa-se, se necessário em treino com praticantes menos avançados, em combate com adversários inferiores ou na competição. E feito encurtando, desviando, retardando ou mesmo não desferindo as pancadas.

Desenvolvimento da técnica:

A) «CONTRA JOGO»:

Jogo (COMBATE) em que se opõem apenas dois jogadores.

B) «SÉRIES DE JOGO»:

Formas de treino individual em que o jogador simula um combate imaginário apenas contra um único adversário.

C) «JOGOS DE CONJUNTO»:

Jogos em que um ou dois jogadores enfrentam sempre um número superior de atacantes, dos quais aprendem a defender-se mediante um trabalho especifico do pau coordenado com movimentos de pernas adaptados às diferentes situações do combate. Aqui estão incluídos o «JOGO DE DOIS EM FRENTE» (um jogador enfrenta dois adversários), «O JOGO DE TRÊS EM FRENTE» (um jogador enfrenta três adversários),«O JOGO DO MEIO OU DA RODA» (um ou dois jogadores enfrentam um grande número de adversários. No caso de serem dois jogadores contra vários, usa-se uma técnica chamada «costas contra costas»).

Também incluído nestes «jogos de conjunto» há o treino individual que é feito através de vários conjuntos de formas de combate em que o jogador simula um combate imaginário contra vários adversários que segundo estas diferentes «formas» estarão colocados em diversos ângulos de ataque. Aqui estão incluídos os chamados «JOGOS DE CRUZ», «JOGO DOS VARRlMENTOS», «JOGOS DE QUADRADO», etc.

COMPETIÇÃO:

A competição incide unicamente sobre o «CONTRA JOGO» que como já foi referido é aquele em que se opõem apenas dois adversários jogando o chamado «JOGO LIVRE» no qual ambos podem empregar todo os recursos técnicos que possuem, sendo no entanto obrigatório controlar as pancadas.

A competição é feita numa circunferência com 3 metros de raio riscada no chão e será declarado vencido o jogador que precisar pisar fora desta, uma ou mais vezes.

Será desclassificado o jogador que não controlar as pancadas, ou ainda aquele que fazendo defesas imperfeitas, procurar atacar sem atender às boas regras da dita defesa. Este tipo de competição está já desatualizado e brevemente (em Outubro ou Novembro próximos) Será substituído por outro tipo de competição mais real mas sem qualquer perigo, uma vez que esta será feita com proteções apropriadas. As regras desta nova competição serão divulgadas oportunamente.

MATERIAL UTILIZADO:

Paus direitos e lisos de madeira de «Lodon» (CELTIS AUSTRALIS LINEU), que são paus típicos ou qualquer outra madeira que não seja excessivamente pesada, mas resistente, e que seja suficientemente flexível (não de mais) e macia (não deve transmitir vibrações das pancadas às mãos de quem as segura), como por ex.: CASTANHEIRO, CARVALHO,FREIXO, MARMELEIRO, etc…

Para jogadores adultos do sexo masculino, os Paus (ou varas) devem medir 1,60m e pesar cerca de 600g. Se os jogadores forem também adultos mas do sexo feminino, a medida dos paus manter-se-á sensivelmente na mesma, mas o peso não deverá exceder as 400g. Para jovens e crianças, tanto o peso como a medida deverão ser proporcionais à idade e ajtura do jogador. Para a generalidade dos casos, todos os paus para este jogo deverão ser ligeiramente mais grossos numa das extremidades (a que bate) do que na outra (onde se pega).

LOCAL:

Qualquer local plano com uma área mínima de seis metros por oito (ginásios, campos de ténis, campos relvados, terra batida, areia da praia, etc.), sendo muito agradável jogar ao ar livre.

PARTICIPANTES:

Todas as idades, ambos os sexos. Para a competição é necessário também a participação mínima de um Juiz que normalmente é um mestre ou um instrutor escolhido também pelos mestres.

IMPORTÂNCIA DO JOGO DO PAU COMO ACTIVIDADE PSICO—MOTORA E SEU VALOR EDUCATIVO

Sob o ponto de vista de actividade de carácter psicológico,o jogo do pau encerra em si extraordinárias possibilidades, e da sua prática de carácter técnica se pode, desde já focar o desenvolvimento da coordenação motora; a alusão empírica dos antigos mestres de que «olho vê, o pé anda e o pau bate» refere uma atitude conjunta do aproveitamento dos recursos anatómicos e fisiológicos; a existência dum objecto exterior,cujo maneio implica grande destreza, envolve um melhoramento de capacidade de percepção e consequentemente, uma melhoria da própria consciência do corpo.

Os diferentes ritmos a que a prática sujeita, nos seus esquemas tradicionais de treino, são tema de situações e períodos de dispêndio de energia que se enquadram, quer no trabalho dito de endurance, aeróbico, entre as 120/140 pulsações/minuto e que se encontra nas execuções de aperfeiçoamento técnico, de intensidade moderada, quer no trabalho dito de resistência, anaeróbico, entre as 140/180pulsações/minuto, e que se encontram nos períodos de maior intensidade, caso de combate ou do treino mais intenso; desta forma se adquire também controlo respiratório e melhoria na capacidade de recuperação.

Da prática se desenvolve o equilíbrio dinâmico, o que se associa a correcção de hábitos posturais, bem como a relaxação, linhas mestras de eficácia de execução; há ainda que considerar que a execução, de um caracter rítmico, nos esquemas técnicos de base, correspondem a um melhoramento analítico dos movimentos, que, pela sua natural correcção, visto serem originados por respostas intuitivas às solicitações surgidas, virão a ser criadas durante o contra-jogo ou qualquer outro tipo de jogo; como em outra qualquer técnica de combate, nota-se um desenvolvimento aturado da percepção psico-cinética, elemento que, associado aos restantes, contribui para uma melhoria geral do esquema corporal.

No tocante ao desenvolvimento da potência o trabalho incide essencialmente na execução em velocidade, se bem que, com determinados intuitos específicos, haja vantagens na utilização de cargas superiores para aperfeiçoamento técnico.

Note-se que, não sendo o jogo do pau uma técnica de oposição directa, não é óbice o peso, a força, a idade, (caso corrente o jogador encontrar a sua melhor forma entre os 30 e 50 anos) ou o sexo: existem actualmente diversas raparigas a praticar principalmente na escola do Poceirão, (concelho de Palmela) do mestre Custódio Neves.

Não deve, no entanto, o jogo de pau deixar de estar inserido em esquemas de treino mais vastos, e consequentemente em simbiose com as leis da programação e metodologia de treino,que, sendo correctamente definidas, não vêm, como se verifica, dissocia-lo das suas características fundamentais.

Sob o plano psico-sociológico,o jogo de pau é de um extraordinário valor educativo, visto que é solicitado quer o esforço individual, quer em oposição a um ou mais adversários (treino,contra-jogo, jogo de um para dois, de um para três, do meio,etc.) quer em esforço coordenado com o de outros, em jogos de grupo contra grupos, jogo de quadrado, da cruz, etc. campos que reflectem os aspectos multi-facetados da sociedade em que vivemos, sendo ao mesmo tempo uma escola de desenvolvimento das qualidades pessoais e sociais. O carácter extraordinário de modalidade que busca o constante aperfeiçoamento, é corolário daquilo que o jogo de pau representa como ARTE TRADICIONAL PORTUGUESA,que na sua pureza, traduz uma maior integração na cultura nacional, bem como a adeitação e manutenção de uma legítima herança.

É pois, necessário não deixar morrer esta arte, este desporto tipicamente nacional. A todos os bons portugueses se lança este alerta, muito especialmente aqueles que gostam de exercício físico em geral e também a todos aqueles que têm a cargo a difusão do desporto no nosso país.

O apoio tão necessário como merecido às escolas já existentes, a criação de novas escolas a nível nacional, a maior difusão da modalidade nas camadas jovens, a realização de encontros inter-escolas e regionais como também a criação bem orientada de um ambiente leal e desportivo pode ainda permitir e contribuir para que este jogo possa, sem perder o espírito bem português que o criou e o caracteriza, acompanhar a evolução dos tempos e ocupar na terra onde nasceu o lugar que bem merece. »

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