Livro: A Criação do Mundo
Sobre
- Relevância: ★☆☆
- Título: A Criação do Mundo (O Terceiro Dia)
- Autor: Miguel Torga (1907-1995)
- Publicação: Volume II, Coimbra: Coimbra Editora, Lda, 1938
- Formato: 18 cm x 12 cm
Romance autobiográfico, que é um clássico da literatura portuguesa contemporânea. Obra composta por cinco volumes, sendo os dois primeiros volumes pertencentes à quarta edição, a primeira refundida (não mais alteradas); o 3.º vol. é da 2.ª edição refundida e o 4.º e 5.º vols. são da primeira edição.
Sinopse
«Querido leitor: vais ler de uma assentada, se a maciez do texto te não desanimar, os seis dias desta «Criação do Mundo», que foram aparecendo nas montras separadamente, à medida que iam decorrendo. Livro temerariamente concebido na mocidade, imprevisível na trama e no rumo, só o tempo lhe podia dar corpo e remate, traçando-lhe o enredo e marcando-lhe a duração.»
Neste livro, Torga, primeiro escritor a receber o prémio Camões, narra as principais lembranças de sua vida, como a infância em Trás-os-Montes, as paisagens do campo, sua primeira viagem pela Europa dominada pelo fascismo, o encontro em Paris com exilados políticos portugueses, as rebeliões contra o Estado Novo, a guerra civil espanhola, e até a sua experiência nas cadeias de Salazar. [1]
Excerto da obra
Destacamos o II Volume desta obra, O Terceiro Dia da Criação do Mundo.
« O andor tinha três laços, e representava a torre de Agarêz. Bofetada dos de Donelo aos brios do povo, por causa dum relógio que já fez a infelicidade de muita gente. Apesar de milhentos peditórios e rifas a seu favor, nunca chegou a ser comprado. Daí a polvorosa que se levantava sempre que alguém mexe na ferida. E o prepósito era precisamente esse: acirrar. Muito em segredo, a bisarma foi armada lá na terra, e S. Brás metido no sítio do mostrador. Francamente! A procissão sai da igreja às dez e meia, e atravessa Agarez antes de meter pela serra acima a caminho da ermida. Mas em vez de se apresentarem a horas devidas, como os demais, não senhor: só quando ela passava em frente do cruzeiro, é que os de Donelo deram o sinal de vida. Roberto, assim que ouviu estoirar os morteiros anunciadores daquela chegada provocadora, correu perto do palio a saber ordens do Manuel da Tia, principal mordoma, que pagava uma das varas. – Aí vêm eles… – disse. – Deixa-os vir… – respondeu o outro, a enxugar a testa. – Não se lhes liga importância… Que sigam atrás, se quiserem. E, conforme cantarem, dançamos nós… – Calma! – Recomendou o senhor prior, que, entre dois acólitos – o padre Rego de Paços e o padre Capão de Covas – , levava o santo lenho encostado ao peito. Os de Donelo entraram pelo caminho velho. O andor, descomunal, bandeava que parecia um castanheiro em Novembro. Só por meio de cordas seguras por quatro homens evitava que tombasse. O povo de fora, alheio ao acinte, olava a maravilha assombrado. Os de Agarêz mordiam-se de raiva. A procissão ia andando. A música de Magueija, que revezava com a de Constantim, tocava o Queremos Deus. As zeladoras andavam numa fona para nos manterem na forma. O encontro foi no Eiró. Como um odre – o vinho de Donelo é trepador – , o farsola do Rodrigo adiantou-se alguns passos dos companheiros e, sozinho no meio da estrada, ergueu as mãos e gritou: – Pare a procissão! O Animal do Jaloto, que levava o estandarte e abria o cortejo, titubeou, pousou o mastro, e ficou ali a mastigar em seco, lorpa de todo. As figuras foram estacando também, claro. O Roberto que, entretanto, entrara na venda do Ti Faustino a molhar a garganta, quando voltou e deu com os olhos no patife a impedir o caminho, perdeu a cabeça. Dum salto, chegou-se ao do pendão e berrou-lhe: – Ó meu filho da puta, quem te mandou parar? – Eu! – fanfarronou o de Donelo. – Anda para diante, cagão dos infernos! Tens medo dum chafedes daqueles? – Pare a procissão! – teimou o outro. – Queremos entrar. – Metam-se atrás, se quiserem. – E por muito favor! – Os cães é que andam à trela… E armou-se a trovoada. Siga, não siga, torna que deixa, e ainda o Rodrigo ia a meter a mão no bolso a sacar da mauser, já tinha as tripas de fora. Os de Donelo, mal viram cair o de lá, ficaram cegos: ergueram os varapaus e começaram a eito. Gritaria, correrias, as varas do pálio transformadas em estadulhos, e o próprio padre Capão, de pistola em punho, a defender a pele e a meter os mais assanhados na ordem. Não morreu ninguém, felizmente, mas chegou para afligir. S. Brás ficou sem um braço, e Santa Ana, que vinha no andor de Arca esquadrilhada de todo. O Chichanas, tal mocada levou na cabeça, que teve de ser trepanado. Nunca mais regulou bem. A procissão continuou, embora desmantelada, e tudo correu normalmente, a seguir (...) » |
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