Livro: Caçadas portuguezas

Fonte: Jogo do Pau Português
capa do livro

Sobre

  • Relevância: ★☆☆
  • Título: Caçadas portuguesas: paisagens, figuras do campo
  • Autor: Zacarias d'AÇA (1839-1908)
  • Publicação: Lisboa: Secção Editorial da Companhia Nacional Editora, 1898
  • Formato: 280 páginas. Ilustrado com retrato do autor em extratexto (22cm x 15cm)


No prefacio da obra Caçadas portuguezas, o autor afirma que o seu livro: «… o anima o espírito da nossa terra – fala de coisas portuguezas.», que tem na maior parte caracter autobiográfico, refere a alegria dos caçadores, os «enthusiasmos e os arroubos da paixão … do nascer ao por do sol sentimo-nos outros – estamos em contacto intimo com a natureza». [1]

Prefácio

«(...) Os capítulos todos d'este livro — afora dois ou três — são capítulos da minha vida, e quando os recordo, alegra-se-me ainda o coração. E signal certo de que foram dias bem passados, é que ainda não se me apagou da memoria o sol, que os alumiou. Sol que brilha no passado, sol poente hoje para mim!...

(...) Quadros, scenas, paizagens, marinhas, figuras — tudo é desenhado ou esboçado do natural, com excepção da Tragédia na caça, que me foi contada por testemunha presencial, que não figura no lance e do Final d'uma caçada - uma tradição da minha família.»

4 de junho de 1898 Zacharias D'Aça

Excertos da obra

Excerto do capítulo Uma tragédia na caça, história contada por testemunha presencial ao autor.

«(…) À porta do caseiro, outrora sempre hospitaleira, e onde ele era o bem-vindo, aparecera um homem de má catadura, que, em tom desabrido, o interpelou grosseiramente. (…)

— Quem é você? Não ouve? Ponha-se lá fora!

Foram as primeiras palavras que ele dirigiu ao doutor. João de Bettencourt, mediu o homem, e viu imediatamente que tinha diante de si um destes guardas do campo, ás vezes assassinos façanhudos, que alguns proprietários rurais encarregam da defesa das suas quintas e herdades, sem se lembrarem do odioso que isso acarreta sobre eles, e dos grandes prejuízos e perigos, que de ali lhes podem advir.

— Sou um caçador, e venho buscar uma perdiz, que caiu morta naquela vinha — replicou o doutor - como se não tivesse reparado nas palavras e no tom insolentíssimo do caseiro.

— Qual perdiz, nem qual diabo! Você não me embaça a mim! O que você quer é caçar as perdizes aqui da quinta, e então vem deitar-me lôas, a ver se eu caio. Olhe, isso era bom no tempo do outro: para cá não pega. — Rua!

— Já lhe disse o que devia dizer. A perdiz está ali morta, e eu não saio daqui sem ela. Foi para isso que vim cá, entenda você — replicou o doutor, aparentando uma grande serenidade. — E principiou a caminhar para o lugar que apontara.

(…) O guarda, vendo o movimento do caçador, rosnou uma praga, e atravessou-se, vociferando, na frente do seu contendor.

— Saia já daqui para fora, sua alma do diabo! . . .

Você, cães e tudo — e depressa, que já o não vejo!

(…) Sai, ou não sai? — rugiu ele, chegando, com os punhos cerrados, quase a tocar na espingarda do doutor.

— Não saio daqui sem a perdiz, e, se não quer que eu entre na vinha, leve os cães, e vá-ma buscar. Se não, vou eu…

— Vai?! Disse ele, como admirado de uma tal audácia, e com um sorriso terrível.

— Vou, e já — respondeu o doutor, dando logo um passo avante.

— Espere, que eu já lha dou — e dizendo isto o guarda correu á casa. O doutor seguiu-o, mas poucos passos tinha dado, no pequeno terreiro que a defrontava, que já o homem estava de volta, com uma foice roçadoira, e arremetia contra ele, atirando-lhe estas palavras: — Tome lá a perdiz — acompanhadas de um golpe temeroso á cabeça — uma pancada redonda como lhe chamam no jogo do pau, e que dada com uma foice é sempre mortal.

João de Bettencourt conhecia todos os segredos daquele jogo. Nas suas visitas a Salvaterra frequentara os melhores jogadores do Riba-Tejo, aperfeiçoara-se em Lisboa, na escola do celebre José Maria, o Saloio, e nos lugares por onde passara tinha deixado recordações da força do seu braço, da sua destreza e agilidade. Deu um salto á retaguarda, e a foice passou-lhe, como um relâmpago, diante dos olhos. Cresceu o outro sobre ele, e atirou-lhe o segundo golpe também atravessado, que não o alcançou, e ao terceiro, de ponta, o doutor, furtando o corpo, desfechou…

O estrondo do tiro confundiu-se com um grito: o malvado caiu. Estava morto!

— Assim o quiseste — disse o doutor, encarando o cadáver, que lhe jazia aos pés, e carregando a espingarda.

Depois, com a physionomia contrahida pela impressão da tragedia, de que a sua má fortuna o fizera protagonista, olhou em volta de si. Não havia ninguém. Diante dele estava só a fiel Diana com uma perdiz na boca.

O pobre animal, ouvindo o tiro, entrara na vinha, e de lá trouxera a causa inocente daquela triste aventura.

— Dá cá, Diana — disse o caçador, voltando-lhe as costas, e, pegando na perdiz, relanceou os olhos á casa solitária do guarda, seguiu pela rua larga da quinta, cortou pelas terras de semeadura e dali passou à vinhas. Caminhando com passo rápido chegou a um portelo, que dava saída para campos, transpô-lo e achou-se no meio dos seus companheiros. » (pp.183-187)

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Ver também

Referências

  1. Livraria Castro e Silva, informação obtida no website da livraria