Livro: O sangue e a rua

Fonte: Jogo do Pau Português
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capa do livro

Sobre

  • Relevância: ★★★
  • Título: O sangue e a rua : elementos para uma antropologia da violência em Portugal (1926-1946)
  • ISBN: 9789722006781
  • Autor: João Fatela
  • Publicação: - Lisboa : Dom Quixote, 1989
  • Coleção: Portugal de perto : biblioteca de etnografia e antropologia; 18
  • Formato: 262 páginas (160 x 233 x 18 mm)

Excerto da obra

« Com o jogo do pau, estamos perante uma manifestação lúdica que, fora de qualquer contexto cerimonial obrigatório, traduz uma forma gonística de viver e, por isso, deve ser encarado como factor de regulação da violência em cujas fronteiras se situa e para cujo campo também não raramente se deixa arrastar. Escreve Veiga de Oliveira no seu conhecido artigo: «O jogo do pau e o complexo belicoso em que ele se integra - nomeadamente na forma que ele apresenta nas zonas rurais e sobretudo na área nortenha - por ele próprio criado ou alimentado (...) parece-nos resultar de fundas tendências do homem, em que a agressividade não se dissocia de um ludismo basilar, e que neles encontram um campo particularmente adequado para se expandirem. E, ao mesmo tempo que respondiam a uma necessidade de autovalorização, exprimem com toda a nitidez um mundo de valores viris essenciais, criando desse modo um domínio exclusivo de que as mulheres eram excluídas e que talvez mesmo se lhes opunha, e que era a própria afirmação masculina. E isso tinha uma grande relevância numa sociedade organizada, sob muitos aspectos, sobre uma diferenciação fundamental por sexos» Se o «destino» de uma cultura se lê igualmente nos jogos, como pretende Caillois, o 'jogo do pau constitui um admirável exemplo de uma sociedade agonística, de uma cultura de desafio em que o homem tende a demonstrar constantemente a sua superioridade sobre os outros, sem visar destruí-los, apesar de ser logicamente este o seu desenlace. O jogo, e o jogo agonístico em particular, cria uma situação de igualdade entre parceiros, que a realidade não pode proporcionar.

O 'jogo do pau é uma técnica de luta em que a arma é um pau direito e liso, da altura aproximada de um homem, empunhado e manejado por cada um dos contendores, que com ele procuram atingir o adversário (ou adversários) e defender-se dos golpes por ele(s) desferido(s). Quando praticado como jogo-combate, o que acontece principalmente na região nortenha, como se sabe, «todos os meios e golpes se usavam, e a maestria constituía somente uma garantia maior de vencer». Mas um «código tácito de honra», que exprimia «o próprio valor do jogo e representava uma regra incontornável num jogo aparentemente sem regras, proibia atacar, por exemplo, alguém que não levasse pau. Em alguns sítios, havia «gestos específicos de desafio», como «riscar o campo», ou seja, «fazer no chão um risco com um pau e ditar uma cominação arrogante a quem o atravessasse», ou, mais geralmente, «passar arrastando o pau pela frente dos inimigos». Era ainda frequente que «a simples comparência ou passagem do grupo adversário, sobretudo em território da frequência inimiga», constituísse uma provocação...

O pau, que fazia parte da «indumentária normal do homem do campo», acompanhava-o em todas as suas deslocações, sobretudo quando ia sozinho ou em rancho com a gente da sua aldeia a feiras ou romarias da região onde comparecia gente de outras aldeias, «e era de recear que entre umas e outras se desencadeassem rixas, por razões de momento ou em nome de desavenças antigas». A tradição queria que duas aldeias rivais comparecessem a determinadas romarias para «desforras sucessivas e encadeadas, das quais não raro a causa primária da dissidência já se diluíra». Neste caso, as pessoas iam já com «a intenção do combate, que se desencadeava ao menor sinal, pretexto ou provocação», dando lugar a verdadeiras batalhas campais que se terminavam com a acostumada «profusão de cabeças rachadas» e, por vezes, «um ou outro homem morto ou a agonizar»...

X. Lorenzo Fernandez, «O varapau», O Comércio do Porto de 10/3/1959, e C. Lisón Tolosana, op. cit.,(...)
26O pau jogava-se também, com muita frequência, na região nortenha em «disputas competitivas», geralmente improvisadas, que não eram propriamente combates e resultavam de «um repto arrogante, tomando o aspecto de uma afirmação pessoal de superioridade por parte dos jogadores que nelas intervinham». Acrescente-se ainda que, na Galiza, onde o jogo do pau era igualmente bastante praticado, o rapaz «tinha-se por moço quando arranjava o seu varapau e ia de ronda com os outros». Conta-se que só largava o varapau quando estava em casa da moça, à lareira, deixando-o à porta «para indicar aos outros moços que nada tinham que fazer ali...».

Ao serviço de «todas as causas, tanto integradoras, como desintegradoras», Veiga de Oliveira duvida que o jogo do pau possa ter sido um «factor de ordem e controle social, a despeito da acção intimidativa que ele sem dúvida exercia», embora mereça ser visto como «um poderoso agente de coesão vicinal» e uma forma de valorização pessoal: o facto de se jogar bem o pau fazia do jogador, «fosse de que nível social fosse, ‘alguém’ na região, gozando da consideração devida a quem possui um valor que se impõe». Todavia, nós persistimos em ver no jogo do pau uma real capacidade de regulação da violência pela multiplicidade de funções (utilitária, lúdica, violenta) que esse instrumento era levado a desempenhar e do facto de que cada uma delas podia a todo o instante transformar-se no seu contrário. Se o ludismo contém a possibilidade da violência, esta pode igualmente desabrochar em ludismo. Da mesma maneira que as sociedades tradicionais aprendiam a controlar a violência dando-lhe uma existência social, o pau podia contribuir para a sua prevenção de uma forma tanto mais eficaz quanto a sua capacidade em provocá-la não obrigava a sair dos limites do jogo. Quanto «às causas desintegradoras» a que o seu uso pôde estar ligado, haverá que analisá-las à luz das relações de poder (sociais, económicas, políticas, etc.) que percorrem a sociedade rural e alteram o seu equilíbrio interno, bem como dos numerosos factores que foram quebrando o «sentido unitário da aldeia», de que fala Veiga de Oliveira, e que conduziram ao desaparecimento do próprio jogo.»
(Páginas 133-135)

« Pela sua «inserção ritual» no quadro mítico da romaria, a violência era submetida a um trabalho de codificação, tanto no que respeitava a vinganças pessoais que nela encontravam o seu desfecho, como a lutas entre aldeias rivais que escolhiam religiosamente a romaria para resolver os seus diferendos. Eram essas lutas que imprimiam à romaria o seu cunho tradicionalmente violento, assumindo por vezes o carácter de verdadeiras «guerras», como se vê pelos casos relatados pelo abade de Baçal, relativos a finais do século XIX e princípios do século XX, uma das quais chegou a durar um dia e uma noite e fez muitos mortos e feridos.»
(Página 136)

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(Página 136)

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