Artigo: Actas da 2ª Eira Folclórica da Região Caramela

Fonte: Jogo do Pau Português
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  • Relevância: ★★★
  • Título: Actas da 2ª Eira Folclórica da Região Caramela, Pinhal Novo: 20 e 21 de março 1999
  • Autor artigo: A. Matos Fortuna (1930-2008)
  • Publicação: Rancho Folclórico da Casa do Povo de Pinhal Novo, 2000


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JOGO DO PAU

Poderia abrir, ou tentar o desenvolvimento de um subcapítulo a propósito de, como agora se diz, tempos livres ou actividades lúdicas dos caramelos, assunto naturalmente bem adequado na explanação da sua vivência colectiva. Reconheço, no entanto, dificuldade em lhes conseguir focos de particularidade, algo muito própria, por conseguinte. de modo distinto, do que nesse âmbito se pratica na esfera de qualquer outro grupo étnico ou em outra determinada região.

Uma modalidade desportiva há, no entanto, que marcou fundo a sua prática entre os caramelos da margem esquerda do Tejo: — o jogo do pau, de características genuinamente portuguesas que encerra um conjunto de predicados que dificilmente ou talvez nenhum outro possa igualar quando se pretende reunir à beleza atlética da competição a agilidade e a destreza de quem o pratica no meio de perigo efectivamente real mas que o jogador hábil sabe ultrapassar. De facto, que extraordinária emoção encerra um assalto de jogo do pau bem disputado! O vigor com que as bordoadas são atiradas, a rapidez com que são defendidas, o arrojo com que se corta um golpe que se poderia tornar mortal, a instantaneidade com que se desvia uma estocada perigosa são fases repletas de singular virilidade e, frequentemente, provocam frémitos de emoção.

Erroneamente e com frequência há quem confunda o jogador de pau, o verdadeiro, aquele que conhece na sua profundeza, a "arte e ciência da esgrima nacional" com todas as suas "guardas", "sarilhos", "cortes", "cobertas", "retaguardas", "esperas", etc., com o rufia, provocador e desordeiro cuja actuação se limita a um pseudo desporto desregrado, bruto e selvagem. O jogador de pau, capaz de transformar um cacete em arma terrível é geralmente tão resoluto, ágil, destro e arrojado como correcto e leal. Quase por instinto sente e vive essa noção ética que, aliás os mestres — os autênticos — também ensinam e exemplificam.

Dois nomes quase legendários da modalidade que toda a região de Pinhal Novo conheceu e admirou podem ser indigitados como paradigmas desse tipo de desportistas: mestres (era assim mesmo que justificadamente definiam) António Moleiro e Domingos Margarido.

Mencionei-os, não ao acaso, mas, com intenção seguindo a ordem alfabética, porque qual deles era, efectivamente, primeiro, nem eu, nem ninguém, pode afiançar.

Moleiro que, aliás, se chamava António Gaspar Caçoete, nasceu na Venda do Alcaide, em 5.5.1895. Domingos Henrique Margarido, no Pinhal Novo, poucos anos antes.

Pessoalmente, lidei bastante com o primeiro, podendo, assim, comprovar as positivas qualidades humanas que o caracterizaram, por uma delicadeza e compostura singulares em ambiente social rude levando-o, conforme sublinha um dos seus discípulos da esgrima portuguesa, a não tratar por tu uma simples criança desconhecida. Relativamente ao segundo, propus, com êxito, a atribuição do seu nome a uma rua de Pinhal Novo, quando integrei a Comissão Municipal de Toponímia.

Ambos se inscrevem nas listas dos mais notáveis jogadores de pau, merecendo por isso, fotografia e súmula biográfica na publicação melhor corresponde a livro de honra nesse aspecto.

E formaram escola, que, no sentido de prepararem muitos entusiastas, à capacidade de se exibirem em público com competência e denodo, quer projectando a margem esquerda do Tejo a um dos centros regionais em que melhor se jogava no país, que se dividia em dois modos diferenciados de jogo: o do norte e o do sul. O primeiro baseava-se nos impressionantes «sarilhos minhotos» que o tornava mais aparatoso e artístico constituindo a sua exibição sob esse prisma, espectáculo superior ao jogado no sul. Este chamado de Lisboa ou da Borda de Água (consoante se reportava à capital, ou à "outra banda" desde a Cova da Piedade a Valdera) atingia mais dureza e violência, pois os ataques eram lançados como braço direito, imprimindo mais rapidez e alcance, enquanto os nortenhos atacavam. quase sempre, com as duas mãos ao mesmo tempo, o que o jogador do Sul apenas fazia na defesa, para tornar mais sólida.

Conquanto em rigor não fosse um jogo exclusivamente de caramelos. a verdade é que na zona de Palmela assim pareceu e como tal foi popularmente considerado. Os dois "catedráticos", a despeito de já nascidos no concelho deveriam, pelos apelidos, ter a proveniência avoenga d'Entre Vouga e Mondego. A plêiade que lançaram a jogar, excelente quer na quantidade quer na habilitação, era natural e moradora dos sítios de que Pinhal Novo subiu a capital. Nessa área, aos domingos á tarde, o jogo do pau ocupava lugar de relevo em programas de grande atracção popular.

Sem intuito de uma lista exaustiva, ou sequer longa, mas só quase a título de exemplo, pode-se mencionar, entre outros excelentes jogadores da região: Custódio Neves, que formou uma vasta série de bons praticantes da modalidade, sobretudo quando mestre Moleiro se retirou da actividade instituíndo mesmo, uma equipa feminina que jogava com desembaraço e perfeição; Casimiro e António Maia, respectivamente pai e filho, do Lau; António Neto, de Valdera e Manuel Moleiro, também de Valdera e neto do grande senhor da esgrima portuguesa na região; Herculano Lagarto, hoje motorista da Empresa «Belos» que logoem criança começou a jogar; Luciano Maia, da Palhota, Cristino Balseiro, do Vale da Vila; Jaime das Neves, de Lagameças; José Padaço e Sérgio de Oliveira. Ambos de Cajados; António Pidal e Cassiano dos Santos, do Lau; Joaquim e António Algarvio, irmãos, de Lagameças; Joaquim Rocha e Manuel Jorge do Vale da Vila; Vaspasiano dos Santos c José Lourenço, de Rio Frio, Se por aqui me fico, não é por falta de nomes ou de mérito dos que, muitos mais poderia nomear, mas tão somente por longa já ir a lista de habilíssimos caramelos do concelho de Palmela que com arte, ciência e técnica cultivavam a modalidade de esgrima nacional, porquanto as outras três (espada, floreste e sabre) nasceram no estrangeiro a partir dos ócios, da nobreza medieval. O jogo do pau é enraizadamente português e popular. No entanto, o rei D. Carlos não teve dúvidas em o escolher como um dos seus desportos preferidos, ultrapassando a simples posição de espectador, jogando-o a sério com todas as regras e exigências.

Não sei se alguma vez Domingos Margarido e António Moleiro cruzaram as suas varas de lodo (que também podiam ser de castanho ou, mesmo de oliveira) em jogo frente a frente.

Diz-se, e li em dissertação de mestrado universitário, que ambos um dia se dispuseram em enfrentar mas sob uma condição: previamente, assinavam um perdoamento de morte com aprovação da autoridade competente. Quer dizer: se um morresse no despique o sobrevivente (se o houvesse), de antemão e por expressa disposição do falecido, ficava isento de toda e qualquer responsabilidade...


A. Matos Fortuna, Memórias da Agricultura é Ruralidade do Concelho de Palmela, Câmara Municipal de Palmela, 1997. »

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