Artigo: Diario Illustrado - Jose Maria Saloio - Recordações

Fonte: Jogo do Pau Português

Sobre

  • Relevância: ★★★
  • Jornal: Diário Illustrado
  • Título: Jose Maria Saloio - Recordações
  • Autor: Beldemonio
  • Publicação: nº 3:732 de 25 setembro 1883


Mestre José Maria da Silveira, «o Saloio», conhecido por sua força descomunal e habilidade no Jogo do Pau, era uma figura icônica de Lisboa no século XIX. Apesar de sua imensa força, era descrito como bondoso e honesto, evitando abusos e confusões típicas dos valentões da época.

A narrativa centra-se em um episódio lendário de sua vida: ao ser criticado por um jornalista que mencionou o barulho causado por suas passadas no palco do Teatro de São Carlos, onde trabalhava como corista, José Maria decidiu responder de forma inusitada. Encontrou o crítico num café e, com calma intimidadora, obrigou-o a beber sucessivos copos de capilé (uma bebida adoçada), até que o homem, exausto e aterrorizado, foi liberado com um aviso de que da próxima vez enfrentaria consequências ainda mais “criativas”.

A história reflete a mistura de força física, sagacidade e um senso de justiça peculiar que caracterizavam José Maria Saloio, perpetuando sua lenda na memória popular lisboeta.

« José Maria Saloio

Este home, cujo fallecimiento noticiavamos ante-hontem, foi talvez o maior valente da sua geração em Lisboa. Elle era una figura lisboeta, quer dizer, d'aquelas que o Childo conhece e que sua conhecem o Chiado. A morte é um acontecimento no alto mundo que se move em peregrinações diarias d'elegancia, desde o Pote das Almas até ao Loreto.

Ainda a última hora, os seus oitenta e trez annos adorados de cabellos brancos, erectos na etatura massica de um athleta, di- ziam o que tinha sido a sua mocidade, robusta e sã. Elle era um bello velho, accusando a sua antiga força e a sua bondade, porque este gigante possuia a bondade dos verdadeiramente fortes.

Ouvindo-se a lenda maravilhosa das suas proezas, em que nunca faltára a um sentimento profundo de honestidade, podia-se ter a suggestão desse pom colosso S. Christovão que se vê nas lythographias d'Epinal, manso como um cordeiro sob o peso do Menino Jesuz, atravessando um ribeiro n'uma pernada das suas immensas pernas.

De José Maria Saloio, o hercules e o terrivel jogador de pau, não consta que alguma vez tivesse abusado gratuitamente da força, n'essas fanfarronadas tão frequentes em que se criam as reputações dos desordeiros. Uma vez, comtudo, revoltou-se-lhe a conseiencia com uma injustiça de que foi victima, e vingou-se por uma fórma que ficou lendaria apezar de picaresca.

Elle era corista em S. Carlos. Um dia, um critico musical que vive ainda e que n'esses tempos adivinhava talvez os modernos processos minuciosos, - pegando por tudo, como se costuma dizer, - escreveu no seu jornal, pouco mais ou menos:

«O que se não pode tolerar além do mau desempenho da opera, é que o corista José Maria faça um barulho d'ensurdecer com as suas passadas no palco, etc., etc.»

José Maria Saloio, effectivamente, com o seu enorme corpo, era uma trovoada que passava no palco de S. Carlos, sempre que entrava em scena. O edificio tomava-se de tremuras, n'essas occasiões, sob a mole d'quelle personagem. Era como se um cyclope subisse do Etna a dar o seu giro por entre as dansarinas e as comparsas.

Mas José Maria Saloio não gostou da coisa, e foi no dia seguinte procurar o critico a um café que havia onde é hoje a livraria Mattos Moreira. Não se troconnem uma palavra sobre o artigo.

O critico, que enfiara ao ver a sua victima sentar-se á sua propria meza, achou no mesmo terror a coragem necessaria para lhe offerecer:

- «Toma alguma coisa uma chavena de café?...».
- «Nada, muito obrigado.»
E voltando-se para o moço:
- «Um capillé môrno!»
Veio o capillé. José Maria Saloio chegou-o para deante do critico:
- «Mas espero que me fará a honra...»
- «Oh! decerto! decerto! Ainque eu já tomei café: é só para comprazer.»
- «Outro capillé!» - pediu José Maria Saloio ao moço.
E chegando-o tambem para o critico, que principiava a achar tanta amabilidade demasiadamente terrivel:
- «Agora, mais este!»
- «Nada, não posso mais.»
- «Ha de poder; beba sempre.»
E o critico, em suores frios, bebeu.
- «Rapaz, outro capillé!»
D'essa vez, o sollicito amphytrião só fez um gesto.
- «Mas, senhor, - exclamou o critico, - é impossivel mais, eu rebento!»
- «Deixal-o rebentar, - disse José Maria tranquillamente. - Beba!»
Depois, voltou-se para o creado:
- «Outro capillé!»
O critico já não suava nada que não fosse capillé morno. Tinha uma angustia no olhar. Mas bebeu, sempre pedindo graça, quarto, quinto e sexto capillé. No fim, o José Maria Saloio, despedindo-se, com a maior cortezia, d'aquella vasilha de capillés que ficava espapaçada sobre o seu banco, avisou:
- «Para a outra vez, faço-o beber doze; e depois... depois... (Procurou no espirito alguma coisa de terrivel)... e depois, ponho-lhe um pé na barriga!»

BELDEMONIO. »

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