Artigo: Mapa - Jogo do Pau 2016: diferenças entre revisões

Fonte: Jogo do Pau Português
Linha 12: Linha 12:
|
|
«
«
Até ao início do séc. XX era essencial saber '''jogo do pau'''. Era uma questão de sobrevivência, de vida ou de morte. Sem guardas nem policias, as pessoas no interior do país tinham de se conseguir defender de ladrões e animais selvagens, viajando de freguesia em freguesia, entre serras e montes, assim como nas lutas e confrontos pessoais com gentes de outras aldeias. O jogo do pau é uma arte marcial portuguesa que durante séculos se desenvolveu essencialmente no norte de Portugal, nas zonas rurais do Minho e Trás-os-Montes, e um pouco pelo sul da Galiza. Eram outros tempos. No livro "[[Livro: A arte do Jogo do Pau|A Arte do jogo do pau]]", de 1886, Joaquim António Ferreira escreve: ''"Quando de noite me retirar dalguma casa, darei, á sahida da porta, uma pancada forte na soleira, sempre coberto com o meu pau para evitar alguma traição." "Quando tambem de noite, fôr bater a qualquer casa, pegarei no meu chapéo e põl-o-hei na ponta do meu pau; e, assim que se me abrira porta, darei uma passada forte, e ao mesmo tempo mette-rei o pau adiante com o chapéo em cinza; se casualmente vier alguma pancada, apanha-la-ha o chapéo e não a minha cabeça."'' Podemos aqui ver como seria viver na época. Com o perigo latente, sempre presente. No norte de Portugal um homem nunca saía de casa sem levar o seu pau. ''"Vivia-se num estado em que as agressões e os ataques eram sempre de recear."''
Até ao início do séc. XX era essencial saber jogo do pau. Era uma questão de sobrevivência, de vida ou de morte. Sem guardas nem policias, as pessoas no interior do país tinham de se conseguir defender de ladrões e animais selvagens, viajando de freguesia em freguesia, entre serras e montes, assim como nas lutas e confrontos pessoais com gentes de outras aldeias. O jogo do pau é uma arte marcial portuguesa que durante séculos se desenvolveu essencialmente no norte de Portugal, nas zonas rurais do Minho e Trás-os-Montes, e um pouco pelo sul da Galiza. Eram outros tempos. No livro "[[Livro: A arte do Jogo do Pau|A Arte do jogo do pau]]", de 1886, Joaquim António Ferreira escreve: ''"Quando de noite me retirar dalguma casa, darei, á sahida da porta, uma pancada forte na soleira, sempre coberto com o meu pau para evitar alguma traição." "Quando tambem de noite, fôr bater a qualquer casa, pegarei no meu chapéo e põl-o-hei na ponta do meu pau; e, assim que se me abrira porta, darei uma passada forte, e ao mesmo tempo mette-rei o pau adiante com o chapéo em cinza; se casualmente vier alguma pancada, apanha-la-ha o chapéo e não a minha cabeça."'' Podemos aqui ver como seria viver na época. Com o perigo latente, sempre presente. No norte de Portugal um homem nunca saía de casa sem levar o seu pau. ''"Vivia-se num estado em que as agressões e os ataques eram sempre de recear."''




Linha 19: Linha 19:
Na época, o pau, ou varapau, fazia parte da indumentária do homem do campo. Era usado como apoio nas deslocações, ou como arma quando necessário.
Na época, o pau, ou varapau, fazia parte da indumentária do homem do campo. Era usado como apoio nas deslocações, ou como arma quando necessário.


Como o nome indica, no jogo do pau a arma usada é um pau. Uma vara com um comprimento entre 1,50cm e 1,60cm, com uma ponta mais grossa do que a outra. As madeiras mais comuns eram o marmeleiro, freixo, carvalho, castanho e lódão — sendo que a favorita é o lódão, pela sua resistência e flexibilidade. ''"O rapaz tinha-se por moço quando arranjava o seu varapau e ia de ronda com os outros; era assim como ser armado cavaleiro."'' Na época, o pau, ou varapau, fazia parte da indumentária do homem do campo. Era usado como apoio nas deslocações, ou como arma quando necessário. Podemos supor que o manejo do pau, o seu uso e aperfeiçoamento como arma de combate, foi um desenvolvimento natural contra os perigos que o rodeavam. O varapau sempre acompanhava o homem. Se o homem ia a pé, o pau ia na mão. Se ia de cavalo, o pau transportava-se debaixo de uma perna, pronto para ser usa-do. O varapau ''"só se largava de mão enquanto o moço conversava com a sua moça na lareira da casa desta, então o pau ficava à porta, para indicar aos outros que nada tinham que fazer ali."''
Como o nome indica, no jogo do pau a arma usada é um pau. Uma vara com um comprimento entre 1,50cm e 1,60cm, com uma ponta mais grossa do que a outra. As madeiras mais comuns eram o marmeleiro, freixo, carvalho, castanho e lódão — sendo que a favorita é o lódão, pela sua resistência e flexibilidade. ''"O rapaz tinha-se por moço quando arranjava o seu varapau e ia de ronda com os outros; era assim como ser armado cavaleiro."'' Na época, o pau, ou varapau, fazia parte da indumentária do homem do campo. Era usado como apoio nas deslocações, ou como arma quando necessário. Podemos supor que o manejo do pau, o seu uso e aperfeiçoamento como arma de combate, foi um desenvolvimento natural contra os perigos que o rodeavam. O varapau sempre acompanhava o homem. Se o homem ia a pé, o pau ia na mão. Se ia de cavalo, o pau transportava-se debaixo de uma perna, pronto para ser usa-do. O varapau ''"só se largava de mão enquanto o moço conversava com a sua moça na lareira da casa desta, então o pau ficava à porta, para indicar aos outros que nada tinham que fazer ali."''


'''HISTÓRIA'''
'''HISTÓRIA'''


O jogo do pau reinou em Portugal durante séculos, mas os registos antigos são poucos e vagos, mas sempre presentes na história portuguesa. Em 1438, o rei D. Duarte I escreveu "En-sinança de Bem Cavalgar Toda Sela", um dos registos mais an-tigos que se encontra com a técnica usada no jogo do pau. Os 'caceteiros' do rei D. Miguel durante a Guerra Civil Portugue-sa (Guerra Miguelista ou Guerra dos Dois Irmãos), em 1828, eram jogadores do pau. Mas eram ho-mens pagos para bater noutros homens por motivos políticos, a troco de dinheiro. "Batiam em gente geralmente indefesa, com o objectivo de causar terror e calar os opositores de quem lhes paga-va." Diziam que um "caceteiro" dá cacetadas, não joga ao pau. Durante as invasões francesas em Portugal, as guerrilhas do norte, esses camponeses norte-nhos, guerreiros de foices e vara-paus na mão, tiveram um papel muito importante na vitória por-tuguesa. "Adeus, meu Napoleão,1 Que é quasi nzeia-noitedAchaste em Portugal/Quem te désse mui-to açoite" — Raul Brandão Em 1916 Portugal entrou na Primeira Grande Guerra. Muitos homens minhotos e transmontanos fo-ram enviados para a guerra das trincheiras, e com eles foi a arte do jogo do pau. Era uma vanta-gem grande. Deram-se bem no manejo da baioneta e na luta das trincheiras, corpo a corpo. "O sargento Américo Pelotas, co-mandando em Lacouture, uma patrulha de reconhecimento, vé cair todos os seus homens ceifados pelas metralhadoras; fica só ele, de pé, defendendo-se de seis alemães que o atacam à baioneta; destro jogador de pau, varre-os, como numa feira; quatro mordem a ter-ra; dois fogem; e quando o valente regressa à trincheira, vitorioso, o tiro certeiro de um sniper prostra--o para sempre." (O heroismo, a elegância, o amor - O Mosteiro da Batalha - Júlio Dantas, 1923) "Um exército? Mas ele não preci-
O jogo do pau reinou em Portugal durante séculos, mas os registos antigos são poucos e vagos, mas sempre presentes na história portuguesa. Em 1438, o rei D. Duarte I escreveu "[[Livro: Livro da ensinança de bem cavalgar toda sela|Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela]]", um dos registos mais antigos que se encontra com a técnica usada no jogo do pau. Os 'caceteiros' do rei D. Miguel durante a Guerra Civil Portuguesa (Guerra Miguelista ou Guerra dos Dois Irmãos), em 1828, eram jogadores do pau. Mas eram homens pagos para bater noutros homens por motivos políticos, a troco de dinheiro. ''"Batiam em gente geralmente indefesa, com o objectivo de causar terror e calar os opositores de quem lhes pagava."'' Diziam que um "caceteiro" dá cacetadas, não joga ao pau. Durante as invasões francesas em Portugal, as guerrilhas do norte, esses camponeses nortenhos, guerreiros de foices e vara-paus na mão, tiveram um papel muito importante na vitória portuguesa. ''"Adeus, meu Napoleão,/ Que é quasi meia-noite/Achaste em Portugal/Quem te désse muito açoite"'' — Raul Brandão Em 1916 Portugal entrou na Primeira Grande Guerra. Muitos homens minhotos e transmontanos foram enviados para a guerra das trincheiras, e com eles foi a arte do jogo do pau. Era uma vantagem grande. Deram-se bem no manejo da baioneta e na luta das trincheiras, corpo a corpo. ''"O sargento Américo Pelotas, comandando em Lacouture, uma patrulha de reconhecimento, vé cair todos os seus homens ceifados pelas metralhadoras; fica só ele, de pé, defendendo-se de seis alemães que o atacam à baioneta; destro jogador de pau, varre-os, como numa feira; quatro mordem a terra; dois fogem; e quando o valente regressa à trincheira, vitorioso, o tiro certeiro de um sniper prostra-o para sempre."'' (O heroísmo, a elegância, o amor - O Mosteiro da Batalha - Júlio Dantas, 1923) ''"Um exército? Mas ele não precisa de um exército além do vara-pau, do burro e do cão. O varapau varre uma feira, tão eficazmente como um canhão krupp"'' (As Alegres Canções do Norte — Alberto Pimentel)
sa de um exército além do vara-pau, do burro e do cão. O varapau varre uma feira, tão eficazmente como um canhão krupp" (As Ale-gres Cançáes do Norte — Alberto Pimentel)  
 
ESCRITORES E CONTOS Sendo o jogo do pau uma arte essencialmente rural, quem sabia lutar não sabia ler nem escrever. O conhecimento passava pelo treino e pela prática, pela neces-sidade. Muitos mestres viviam exclusivamente do ensino, caval-gando de aldeia em aldeia, de re-gião em região. Para prolongarem os dias das liçáes guardavam para si certas técnicas, certos segredos, de forma a terem sempre mais al-guma coisa a ensinar, num dia di-ferente. Mas se estivessem numa freguesia diferente da sua, os mestres escondiam o seu conhe-cimento, dando assim vantagem à sua aldeia em caso de confronto. Existia uma tradição oral na tro-ca de informações, mas não ha-via notas nem manuais. Tudo isto ajudou a que muito se per-desse. Neste sentido, o séc. XIX e início do séc. XX foram glo-riosos, com escritores como Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, etc., a escreverem so-bre o assunto e a incluírem o jogo do pau nos seus romances. " Camilo de Noronha, que, já neste século foi notável como toureiro e varredor de feiras. A sua destreza no fogo de pau era tal, que che-gava a um arraial, apeava e des-troçava a multidão, atirando ho-mem por terra como uma criança que derrota um regimento de sol-dadinhos de chumbo." (O Conde d'Abranhos- Eça de Queirós 1925) TREINAR A SÉRIO. A única forma que tinham de treinar era jogando a sério, con-tra pessoas de outras aldeias, pessoas com outra arte, com técnicas diferentes. "Já os anti-gos diziam que pancada à perna não faz mossa, não mata. Pan-cada na cabeça já é outra coisa." Uma vez, num almoço com o mestre Nuno Russo, ouvi a his-tória do que se fazia para treinar contra outra gente. O jogador ia de cavalo até uma aldeia vizi-nha e dava 2 tostões a um MOÇO para lhe guardar o cavalo à saí-da da aldeia. Então o homem ia a pé até uma tasca, bebia uns copos de vinho tinto e arranja-va uma discussão com alguém. Na meio das palavras erguia o varapau e iniciava a luta. Estes combates eram geralmente le-vados em desvantagem numé-rica, onde um homem lutava contra vários ao mesmo tempo. Quando oceano apertava de-masiado ou quando o homem se cansava, ele dava uma pi-rueta com umas varrimentas para o lado, abrindo um bu-raco no meio do cerco, e fu-gia na direcção do cavalo. Eram treinos arriscados. Pu-nham a sua vida em perigo. Mas não havia outra forma de o fazer. Muitas vezes, membros de al-deias rivais apareciam nas festas  
'''ESCRITORES E CONTOS'''
 
Sendo o jogo do pau uma arte essencialmente rural, quem sabia lutar não sabia ler nem escrever. O conhecimento passava pelo treino e pela prática, pela necessidade. Muitos mestres viviam exclusivamente do ensino, cavalgando de aldeia em aldeia, de região em região. Para prolongarem os dias das lições guardavam para si certas técnicas, certos segredos, de forma a terem sempre mais alguma coisa a ensinar, num dia diferente. Mas se estivessem numa freguesia diferente da sua, os mestres escondiam o seu conhecimento, dando assim vantagem à sua aldeia em caso de confronto. Existia uma tradição oral na troca de informações, mas não havia notas nem manuais. Tudo isto ajudou a que muito se perdesse. Neste sentido, o séc. XIX e início do séc. XX foram gloriosos, com escritores como Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, etc., a escreverem sobre o assunto e a incluírem o jogo do pau nos seus romances. ''"Camilo de Noronha, que, já neste século foi notável como toureiro e varredor de feiras. A sua destreza no jogo de pau era tal, que chegava a um arraial, apeava e destroçava a multidão, atirando homem por terra como uma criança que derrota um regimento de soldadinhos de chumbo."'' (O Conde d'Abranhos - Eça de Queirós 1925)
 
TREINAR A SÉRIO
 
A única forma que tinham de treinar era jogando a sério, contra pessoas de outras aldeias, pessoas com outra arte, com técnicas diferentes. ''"Já os antigos diziam que pancada à perna não faz mossa, não mata. Pancada na cabeça já é outra coisa."'' Uma vez, num almoço com o mestre [[Nuno Russo]], ouvi a história do que se fazia para treinar contra outra gente. O jogador ia de cavalo até uma aldeia vizinha e dava 2 tostões a um moço para lhe guardar o cavalo à saída da aldeia. Então o homem ia a pé até uma tasca, bebia uns copos de vinho tinto e arranjava uma discussão com alguém. Na meio das palavras erguia o varapau e iniciava a luta. Estes combates eram geralmente levados em desvantagem numérica, onde um homem lutava contra vários ao mesmo tempo. Quando o cerco apertava demasiado ou quando o homem se cansava, ele dava uma pirueta com umas varrimentas para o lado, abrindo um buraco no meio do cerco, e fugia na direcção do cavalo. Eram treinos arriscados. Punham a sua vida em perigo. Mas não havia outra forma de o fazer. Muitas vezes, membros de aldeias rivais apareciam nas festas já com a intenção de combater. As lutas comecavam à minima provocação, ao mais pequeno pretexto. Eram lutas campais épicas. O som dos paus a cruzar o ar, a poeira levantada, os gritos das mulheres, o sangue e o vinho derramados. Destas batalhas ferozes resultavam sempre mortos
e feridos. Na base das lutas estava a rivalidade entre pessoas e aldeias, ou a disputa de terras, trocos mal contados, amores perdidos, e, claro, a paixão pelo vinho.
 
Qualquer provocação, qualquer motivo, era justificação para iniciar uma luta. E era nas lutas que se desenvolvia a técnica de jogo. Muitos queriam mostrar o seu valor como lutadores queriam ser "o melhor dentro dos melhores".
 
No ensaio "[[Livro: O Jogo do Pau em Portugal: processos de mudança|O jogo do pau em Portugal]]". Ernesto Veiga de Oliveira, escreve: ''"Em certas partes, havia gestos específicos de desafio: «riscar o campo», isto é, fazer no chão um risco com o pau e ditar uma cominação arrogante a que o atravessasse, ou, mais genericamente, passar arrastando o pau pela frente dos inimigos. "Muitas vezes, a simples comparência ou passagem do grupo adversario, sobretudo em território da frequência inimiga, era já a provocacão, noutros casos, a luta
era a resposta a qualquer intimacão injuriosa ou impertinente."''
 
Na época, por vezes também se faziam demonstrações e pequenos torneios, mas o que começava como brincadeira como jogo de demonstração, rapidamente se transformava num combate a sério, duro e violento. Na sua origem estava o ego e o amor-proprio, especialmente tendo público a observar. Não era raro haver 'esperas' para desforras nos caminhos de regresso. ''Uma axioma conhecido por experiência desses jogadores rurais, é que era sempre perigoso dois homens brincarem a jogar o pau, porque ninguém gosta de perder, sobretudo havendo assistência."''
 
FEIRAS E ROMARIAS
 
Nas feiras e romarias os melhores Lutadores (puxadores) mostravam a sua arte varrendo a feira. Intocáveis, rodopiavam o varapau pela feira, partindo varas e cabeças dos valentes que se tentassem opor. Era a forma de consolidarem o seu prestígio como grandes jogadores, andando à pancadaria, provocando duelos, lutando contra outros jogadores igualmente habeis e valentes, mostrando à terra que continuavam bons puxadores. ''Ora, senhores./Fui eu só contra trinta/E cá só com o meu cajado/Pois senhores dei-the tantas/Que os levou o diabo./E elles todos armados/De Fouces e de forcados./Mas assim que se viram/Com as cabeças rachadas/E os hombros deslocados/fugiram todos/Que os ferou os diabos.'' (Joaquim Maria da Costa, 1890)
 
Percorriam regiões inteiras a lutar e a marcar território. Existia uma aura heróica que rodeava estes puxadores. Muitas histórias se
contavam sobre as suas proezas e façanhas. No livro do [[Livro: O Malhadinhas|Malhadinhas]]. Aquilino Ribeiro escreve
 


»  
»  

Revisão das 19h45min de 21 de maio de 2023

Sobre

  • Relevância: ★★☆
  • Título: Jogo do Pau
  • Autor: Bruno Afonso e Frederico Martins
  • Publicação: Artigo em «Jornal Mapa» nº 12 de fevereiro-abril 2016, pp. 31-32

Artigo

« Até ao início do séc. XX era essencial saber jogo do pau. Era uma questão de sobrevivência, de vida ou de morte. Sem guardas nem policias, as pessoas no interior do país tinham de se conseguir defender de ladrões e animais selvagens, viajando de freguesia em freguesia, entre serras e montes, assim como nas lutas e confrontos pessoais com gentes de outras aldeias. O jogo do pau é uma arte marcial portuguesa que durante séculos se desenvolveu essencialmente no norte de Portugal, nas zonas rurais do Minho e Trás-os-Montes, e um pouco pelo sul da Galiza. Eram outros tempos. No livro "A Arte do jogo do pau", de 1886, Joaquim António Ferreira escreve: "Quando de noite me retirar dalguma casa, darei, á sahida da porta, uma pancada forte na soleira, sempre coberto com o meu pau para evitar alguma traição." "Quando tambem de noite, fôr bater a qualquer casa, pegarei no meu chapéo e põl-o-hei na ponta do meu pau; e, assim que se me abrira porta, darei uma passada forte, e ao mesmo tempo mette-rei o pau adiante com o chapéo em cinza; se casualmente vier alguma pancada, apanha-la-ha o chapéo e não a minha cabeça." Podemos aqui ver como seria viver na época. Com o perigo latente, sempre presente. No norte de Portugal um homem nunca saía de casa sem levar o seu pau. "Vivia-se num estado em que as agressões e os ataques eram sempre de recear."


O VARAPAU

Na época, o pau, ou varapau, fazia parte da indumentária do homem do campo. Era usado como apoio nas deslocações, ou como arma quando necessário.

Como o nome indica, no jogo do pau a arma usada é um pau. Uma vara com um comprimento entre 1,50cm e 1,60cm, com uma ponta mais grossa do que a outra. As madeiras mais comuns eram o marmeleiro, freixo, carvalho, castanho e lódão — sendo que a favorita é o lódão, pela sua resistência e flexibilidade. "O rapaz tinha-se por moço quando arranjava o seu varapau e ia de ronda com os outros; era assim como ser armado cavaleiro." Na época, o pau, ou varapau, fazia parte da indumentária do homem do campo. Era usado como apoio nas deslocações, ou como arma quando necessário. Podemos supor que o manejo do pau, o seu uso e aperfeiçoamento como arma de combate, foi um desenvolvimento natural contra os perigos que o rodeavam. O varapau sempre acompanhava o homem. Se o homem ia a pé, o pau ia na mão. Se ia de cavalo, o pau transportava-se debaixo de uma perna, pronto para ser usa-do. O varapau "só se largava de mão enquanto o moço conversava com a sua moça na lareira da casa desta, então o pau ficava à porta, para indicar aos outros que nada tinham que fazer ali."

HISTÓRIA

O jogo do pau reinou em Portugal durante séculos, mas os registos antigos são poucos e vagos, mas sempre presentes na história portuguesa. Em 1438, o rei D. Duarte I escreveu "Ensinança de Bem Cavalgar Toda Sela", um dos registos mais antigos que se encontra com a técnica usada no jogo do pau. Os 'caceteiros' do rei D. Miguel durante a Guerra Civil Portuguesa (Guerra Miguelista ou Guerra dos Dois Irmãos), em 1828, eram jogadores do pau. Mas eram homens pagos para bater noutros homens por motivos políticos, a troco de dinheiro. "Batiam em gente geralmente indefesa, com o objectivo de causar terror e calar os opositores de quem lhes pagava." Diziam que um "caceteiro" dá cacetadas, não joga ao pau. Durante as invasões francesas em Portugal, as guerrilhas do norte, esses camponeses nortenhos, guerreiros de foices e vara-paus na mão, tiveram um papel muito importante na vitória portuguesa. "Adeus, meu Napoleão,/ Que é quasi meia-noite/Achaste em Portugal/Quem te désse muito açoite" — Raul Brandão Em 1916 Portugal entrou na Primeira Grande Guerra. Muitos homens minhotos e transmontanos foram enviados para a guerra das trincheiras, e com eles foi a arte do jogo do pau. Era uma vantagem grande. Deram-se bem no manejo da baioneta e na luta das trincheiras, corpo a corpo. "O sargento Américo Pelotas, comandando em Lacouture, uma patrulha de reconhecimento, vé cair todos os seus homens ceifados pelas metralhadoras; fica só ele, de pé, defendendo-se de seis alemães que o atacam à baioneta; destro jogador de pau, varre-os, como numa feira; quatro mordem a terra; dois fogem; e quando o valente regressa à trincheira, vitorioso, o tiro certeiro de um sniper prostra-o para sempre." (O heroísmo, a elegância, o amor - O Mosteiro da Batalha - Júlio Dantas, 1923) "Um exército? Mas ele não precisa de um exército além do vara-pau, do burro e do cão. O varapau varre uma feira, tão eficazmente como um canhão krupp" (As Alegres Canções do Norte — Alberto Pimentel)

ESCRITORES E CONTOS

Sendo o jogo do pau uma arte essencialmente rural, quem sabia lutar não sabia ler nem escrever. O conhecimento passava pelo treino e pela prática, pela necessidade. Muitos mestres viviam exclusivamente do ensino, cavalgando de aldeia em aldeia, de região em região. Para prolongarem os dias das lições guardavam para si certas técnicas, certos segredos, de forma a terem sempre mais alguma coisa a ensinar, num dia diferente. Mas se estivessem numa freguesia diferente da sua, os mestres escondiam o seu conhecimento, dando assim vantagem à sua aldeia em caso de confronto. Existia uma tradição oral na troca de informações, mas não havia notas nem manuais. Tudo isto ajudou a que muito se perdesse. Neste sentido, o séc. XIX e início do séc. XX foram gloriosos, com escritores como Aquilino Ribeiro, Miguel Torga, Camilo Castelo Branco, Eça de Queirós, etc., a escreverem sobre o assunto e a incluírem o jogo do pau nos seus romances. "Camilo de Noronha, que, já neste século foi notável como toureiro e varredor de feiras. A sua destreza no jogo de pau era tal, que chegava a um arraial, apeava e destroçava a multidão, atirando homem por terra como uma criança que derrota um regimento de soldadinhos de chumbo." (O Conde d'Abranhos - Eça de Queirós 1925)

TREINAR A SÉRIO

A única forma que tinham de treinar era jogando a sério, contra pessoas de outras aldeias, pessoas com outra arte, com técnicas diferentes. "Já os antigos diziam que pancada à perna não faz mossa, não mata. Pancada na cabeça já é outra coisa." Uma vez, num almoço com o mestre Nuno Russo, ouvi a história do que se fazia para treinar contra outra gente. O jogador ia de cavalo até uma aldeia vizinha e dava 2 tostões a um moço para lhe guardar o cavalo à saída da aldeia. Então o homem ia a pé até uma tasca, bebia uns copos de vinho tinto e arranjava uma discussão com alguém. Na meio das palavras erguia o varapau e iniciava a luta. Estes combates eram geralmente levados em desvantagem numérica, onde um homem lutava contra vários ao mesmo tempo. Quando o cerco apertava demasiado ou quando o homem se cansava, ele dava uma pirueta com umas varrimentas para o lado, abrindo um buraco no meio do cerco, e fugia na direcção do cavalo. Eram treinos arriscados. Punham a sua vida em perigo. Mas não havia outra forma de o fazer. Muitas vezes, membros de aldeias rivais apareciam nas festas já com a intenção de combater. As lutas comecavam à minima provocação, ao mais pequeno pretexto. Eram lutas campais épicas. O som dos paus a cruzar o ar, a poeira levantada, os gritos das mulheres, o sangue e o vinho derramados. Destas batalhas ferozes resultavam sempre mortos e feridos. Na base das lutas estava a rivalidade entre pessoas e aldeias, ou a disputa de terras, trocos mal contados, amores perdidos, e, claro, a paixão pelo vinho.

Qualquer provocação, qualquer motivo, era justificação para iniciar uma luta. E era nas lutas que se desenvolvia a técnica de jogo. Muitos queriam mostrar o seu valor como lutadores queriam ser "o melhor dentro dos melhores".

No ensaio "O jogo do pau em Portugal". Ernesto Veiga de Oliveira, escreve: "Em certas partes, havia gestos específicos de desafio: «riscar o campo», isto é, fazer no chão um risco com o pau e ditar uma cominação arrogante a que o atravessasse, ou, mais genericamente, passar arrastando o pau pela frente dos inimigos. "Muitas vezes, a simples comparência ou passagem do grupo adversario, sobretudo em território da frequência inimiga, era já a provocacão, noutros casos, a luta era a resposta a qualquer intimacão injuriosa ou impertinente."

Na época, por vezes também se faziam demonstrações e pequenos torneios, mas o que começava como brincadeira como jogo de demonstração, rapidamente se transformava num combate a sério, duro e violento. Na sua origem estava o ego e o amor-proprio, especialmente tendo público a observar. Não era raro haver 'esperas' para desforras nos caminhos de regresso. Uma axioma conhecido por experiência desses jogadores rurais, é que era sempre perigoso dois homens brincarem a jogar o pau, porque ninguém gosta de perder, sobretudo havendo assistência."

FEIRAS E ROMARIAS

Nas feiras e romarias os melhores Lutadores (puxadores) mostravam a sua arte varrendo a feira. Intocáveis, rodopiavam o varapau pela feira, partindo varas e cabeças dos valentes que se tentassem opor. Era a forma de consolidarem o seu prestígio como grandes jogadores, andando à pancadaria, provocando duelos, lutando contra outros jogadores igualmente habeis e valentes, mostrando à terra que continuavam bons puxadores. Ora, senhores./Fui eu só contra trinta/E cá só com o meu cajado/Pois senhores dei-the tantas/Que os levou o diabo./E elles todos armados/De Fouces e de forcados./Mas assim que se viram/Com as cabeças rachadas/E os hombros deslocados/fugiram todos/Que os ferou os diabos. (Joaquim Maria da Costa, 1890)

Percorriam regiões inteiras a lutar e a marcar território. Existia uma aura heróica que rodeava estes puxadores. Muitas histórias se contavam sobre as suas proezas e façanhas. No livro do Malhadinhas. Aquilino Ribeiro escreve


»

Artigo no Jornal

Pode ler o jornal todo na issuu

Ver também