História e Antropologia - Reflexão sobre as Origens do Pau

Fonte: Jogo do Pau Português

REFLEXÃO SOBRE O PAU. ORIGENS

(Histórico-Antropológicas)

Texto escrito pelo Mestre Hélder Valente


A história da arte de utilizar o pau como arma de defesa e ataque é impossível de contar com precisão, pois perde-se na noite dos tempos. Podemos através de dedução lógica, vislumbrar o homem primitivo nos seus primeiros contactos com um galho seco, agarrando-o e utilizando-o como extensão do braço para agarrar ou remover algo, escavando no solo alguma raiz ou a toca de algum animal.

Podemos também imaginá-lo a utilizar um pau, para abater qualquer animal de pequeno porte ou ainda para se defender de algum maior que pusesse em risco a sua vida.

Desde cedo, o homem primitivo deve ter verificado que a utilização de uma vara com dimensões apropriadas poderia ajudá-lo a sobreviver e a tirar vantagens na sua luta com a Natureza, animais ou seu semelhante (Certos grupos de chimpanzés utilizam paus ou galhos nas suas intimidações).

Pode-se afirmar, quase com certeza, que as duas primeiras armas utilizadas pelo homem, foram o pau e a pedra, mas ao contrário desta, que uma vez lançada, deixa o seu utilizador desarmado, o pau, tem a vantagem por ser um prolongamento do braço, poder ser utilizado variadas e repetidas vezes, tanto em acções ofensivas como defensivas, oferecendo por isso uma maior segurança ao belicista. O pau, é sem dúvida o primeiro objecto a ser usado pelo homem com regularidade e para uma multiplicidade de acções no quotidiano primitivo, o que o classifica como o primeiro objecto tecnológico.

Pode-se afirmar que a tecnologia nasce com a utilização racional do pau.

Utilizado como alavanca, poderia remover blocos de pedra ou quaisquer objectos pesados que de outra forma seria impossível; com a ponta aguçada, poderia ser utilizado para perfurar, cavar, ou utilizado como estaca.

Depreende-se que toda a tecnologia humana teve como princípio a utilização do pau, podendo este ser considerado como o primeiro elemento do desenvolvimento tecnológico e guerreiro (A guerra é considerada o factor principal do desenvolvimento tecnológico), estando portanto no cerne da evolução humana.

A lança e suas variantes de piques e alabardas, que foi a arma base em todas as guerras ao longo dos milénios, não passa de um pau ferrado na ponta aumentado assim o seu poder contundente, cortante e penetrante.

A espada, nada mais é do que um segmento de recta mais sólido e afiado que o pau, mantendo-se a sua técnica de utilização dentro dos princípios bélicos básicos do uso da vara curta ou cajado.

A própria enxada, instrumento primeiro da actividade agrícola, que está na base da civilização, é somente mais uma adaptação da vara com guarnição apropriada para o desempenho pretendido.

Não admira que o simples e actualmente tão desprezado pau, tenha tido um papel tão importante (simbólico ou factual) em sociedades antigas, consagrando-se como símbolo de Poder Temporal, Espiritual e Justiça.

Alguns Deuses e Reis de várias civilizações antigas são representados segurando uma vara.

O homem, como ser inteligente, face a um objecto que lhe dava vantagem sobre o seu semelhante e alguns animais, quando em situação de confronto, procurou optimizar a sua utilização, tentando descobrir a forma mais eficaz de o utilizar de modo a anular o contendor, daí talvez a sua representação desde as primeiras civilizações como símbolo de poder.

Em todas as épocas e culturas a vara ou pau, enconteirado simbolicamente ou não, sempre foi associado à realeza, à justiça e ao Poder Temporal e Espiritual.

Terá então talvez aí aparecido o embrião de uma técnica de luta que com a subsequente evolução da inteligência e a necessidade sempre a aguçar o engenho, seria aperfeiçoada ao ponto de ser codificada numa panóplia de movimentos ofensivos e defensivos, com variantes e cambiantes que a prática consagrava como mais eficazes para situações específicas e evoluções do combate.

Estas formas de manejo eficiente da vara, teriam sido passadas dos guerreiros mais hábeis, inteligentes ou experientes (Mestres) para outros membros mais novos da mesma tribo, clã ou grupo, criando-se assim o que poderíamos considerar “grosso-modo” como “escola”. Assim aparecem técnicas de Jogos e lutas do Pau nos países mais diversos e nas mais diversas latitudes. Ainda permanecem actualmente activas em vários pontos do globo, técnicas de jogos de pau.

Podemos encontrar essas técnicas por todo o sudoeste asiático; nomeadamente: China, Japão, Java, Ilhas Celebes, Fidji, Buru, Tailândia, Filipinas, Paquistão, Índia, Malásia, Indonésia bem como no Irão, em África, Algéria Marrocos e outros, também as Ilhas Canárias possuem várias formas de luta com pau.

Também na Europa; a Alemanha, a França, a Itália, a Espanha, Inglaterra, praticamente todos os Países tiveram até há poucas décadas, jogos de luta com pau, por necessidade bélica, embora haja actualmente um processo de revivalismo em todos os países, para os fazer ressurgir nas suas formas lúdico recreativas.

Ainda, o Japão tem várias formas de jogo do pau, donde sobressai o «Bo e Jo» e na Grã-Bretanha o «Quater-Staff », que foi muito popular na idade média e ainda se pode ver executado de uma forma simples, em alguns episódios da velha série televisiva -«As aventuras de Robin dos bosques».

A propósito vejamos o que diz a Enciclopédia Britânica sobre o Quater- Staff:

«Quater-Staff attained great popularity in England in the middle ages. it was usually made of oak, the ends often being shod with iron, and it was held with both hands, the right hand grasping it one quarter of the distance from the lower end (hence the name) and the left about the middle. Was a game of strength and dexterity in which both nobly-born and commoners could compete and excel. The staff was used as a foil or practice substitute, for the long two handed sword of the period (montante) in earlier times it may also have been used as a practised weapon for the spear and pike.»

É curioso observar, as similitudes entre a utilização do pau ferrado ou enconteirado (com pique, choupa, ou porrete) tanto em Inglaterra na idade média, como em Portugal ainda nos princípios do séc. XX.

É de realçar ainda a utilização do pau e das canas, durante a idade média como instrumento de treino para as técnicas das armas metálicas, Montante (espada longa para duas mãos) (no Livro da Ensenança de Bem Cavalgar toda sela que fez el-rei Dom Eduarte de Portugal e do Algarve e Senhor de Ceuta. Cap. XIII; Da maneira de ferir de espada).Pode-se constatar nomenclatura parecida à que hoje usamos, Também a utilização do pau para treino da técnica da lança pique e alabarda: (Método de manejar a lança ou pique, para inteligência de todos os que quiserem fazer hum bom uso seguro das referidas armas. Lisboa, na oficina de António Rodrigues Galhardo, impressor do concelho de guerra. Ano de MDCCCIX).

O Jogo do Pau, nas suas múltiplas técnicas, estilos e variantes, é uma Arte Universal própria do ser humano como criatura eminentemente tecnológica e belicista, na sua procura incessante de afirmação, domínio e poder sobre a natureza e os seus semelhantes.

DIMENSÃO CULTURAL, SIMBÓLICA E MÍSTICA DO PAU

O Pau, instrumento, arma e companheiro do homem antigo e rural, comporta várias designações mais ou menos sinónimas que variam consoante as regiões e o uso específico que se lhe atribui: PAU - VARA - VARAPAU - BORDÃO - BASTÃO - CACETE - CAJADO - TIRSO, ETC...

Designações atribuídas a um segmento de recta geralmente de origem vegetal, cuja dimensão pode variar entre a altura da cintura de um homem e ir até um ou dois palmos acima da sua cabeça, podendo ser eventualmente enconteirado com ornamento simbólico.

Vejamos então o que diz a Encyclopaedia of Traditional Symbols (Cooper J.C. - Thames and Hudson 1978 London.), referent a staff: “Masculine power; Authority; Dignity; Magic power; Journeying; Pilgrimage; it is also phallic, solar and axial symbol. The staff, or crook is an attribute of all good shepherds. Buddhist: Law and order; a symbol of Buddha’s mace, i.e. his teaching. Christian: Christ as the good shepherd; pilgrimage. The staff with rings denotes Episcopal power and authority ; The staff born before high dignitaries depicts the dignity of office; in the left hand the staff signifies Cardinals, Archbishops, Abbots and Abbesses. The staff of pilgrimage is an emblem of SS James the Great, John the Baptist, Jeremy, Christopher, Philip the Apostle, Ursula. The budding staff is an emblem off SS Ethelreda and Joseph of Arimathaea. Egyptian: the staff and the flail are the chief attributes of Osiris as Judge of the dead; the staff with the pen depicts the soul awakening and is an attribute of thent or Logos. Greek - Roman: the herald’s staff, as the caduceus, is the chief attribute of Hermes/Mercury. Hindu: the three combined sticks of Vaishanava tradition symbolise the three realities or the three gunas constituting the phenomenal world, or the control of thought, word and deed of the saint or sage.”

O Pau, bastão, tirso, vara ou báculo é o companheiro inseparável do peregrino, do caminhante ou viandante, o seu apoio na “via” ou “caminho”, conotado “via e caminho” com o seu propósito de caminhada para a Divindade ou percurso Espiritual.

Em todas as épocas e culturas a vara ou pau encanteirado simbolicamente ou não, sempre foi um símbolo associado à Realeza, à Justiça e ao Poder Temporal e Espiritual.

Assim temos o bastão real, representando o poder da Majestade; o bastão de Marechal, significando poder e saber, consagrando autoridade máxima sobre a força militar ao seu detentor, talvez recreando atávica e simbolicamente os poderes mágicos da Vara de Moisés, do Tirso de Dioniso e da Varinha mágica ou bastão do Mago.

Na mesma linha de autoridade e sabedoria situa-se o báculo usado pelas Eminências das igrejas Católica, Ortodoxa e outras, talvez reminiscências dos Deuses e Sacerdotes de antigas civilizações como a Assíria e a Egípcia.

Os Magistrados, pela sua função como administradores de justiça, estão relacionados com o porte da vara; a este respeito Rui Simões transcreve um édito de D. Filipe I nas “Leis Extravagantes” (A fiz em Lisboa a três de Dezembro de Mil Quinhentos noventa e quatro e eu Rodrigo Sanchez a fiz escrever. Livro II fl. 172 - Arquivo Municipal de Beja), que falando das varas dos juízes ordinários: “Que sejam vermelhas e a dos de fora brancas”, e com respeito ao corregedor, dispõe o Rei: “Faço saber a vós corregedor da comarca da cidade de Beja (...) que sendo obrigação dos julgadores que conferem minhas ordenações devem trazer sempre varas e não estarem sem elas quando fora de suas casas se descuidarem nisso e muitas vezes as dão a seus criados que as tenham e tragam o que é contra a decência de seus cargos e meu serviço e autoridade de justiça pelo que vos mando que tragas sempre vara por todos os lugares por onde andares tanto que saíres de vossa casa e não dês a vosso criado que a leve”.

Assim verificamos que o pau está directamente associado ao poder, à justiça, e à sabedoria patriarcal e fálica, por conotação relaciona-se com o membro viril, à serpente, ao caduceu de Mercúrio, logo, à coluna vertebral e à energia Kundalínica, conota-se com o raio (Júpiter). O poder do segmento de recta, no espaço emitindo força, que quando apoiado num fulcro e pelo movimento rotativo da extremidade livre, cria o circulo que em movimento contínuo poderá preencher todas as direcções e trajectórias, podendo anular com as suas linhas de força todos os pontos do espaço dentro do seu campo de acção, criando por intensificação do movimento rotativo, uma esfera de energia, símbolo máximo do Jogo do Pau, por representar o campo de força criado pela vara ao redor do jogador.

Na tradição esotérica, o Pau e o naipe de Paus é associado aos “poderes do fogo”, também no Tarô as cartas: Mago, Eremita, Imperador, Hierofante, são sempre representados com bastão, vara ou báculo, simbolizando o seu poder.

Temos ainda várias expressões populares portuguesas em que o Pau é referido numa enorme riqueza metafórica quase sempre relacionado com forma de defesa ou punição.

- Exs.: “Põe-te a Pau” - significando põe-te em guarda, há perigo.
- ”Jogar com um Pau de dois bicos” - pressupondo ter guardada uma alternativa para o caso da primeira hipótese falhar.
- “Falai do mau, aparelhai o Pau” - quando se fala do mal é prudente estar preparado para o enfrentar.
- “Quem dá pau dá o pão” - aludindo à antiga educação e autoridade paternal.
- “Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”.
- “Pau para toda a obra” – servir para tudo, etc.

O Pau transporta, pois, consigo, uma riquíssima carga Místico-Cultural, que evidência a funcionalidade e o apreço que o homem sempre lhe atribuiu, para além de símbolo supremo da sua essência Viril, poder Másculo e Patriarcal.

Ora como vêem, o PAU é o número 1.