Livro: O gigante do Souto

Fonte: Jogo do Pau Português
capa do livro

Sobre

  • Relevância: ★★★
  • Título: O gigante do Souto
  • Autor: Jorge Carvalho Arroteia
  • Publicação: 2018
  • ISBN: 978-989-99779-3-8
  • Formato: Electrónico


Esta narrativa tem por base a personagem descrita em “O Couseiro ou Memórias do Bispado de Leiria” (1898), relativa ao paroquiano de Souto da Carpalhosa, natural da Ortigosa, apelidado de “Gigante do Souto”. Seu nome: José Braz Arroteia (1795-1880). Ao reconstituir alguns traços do seu percurso de vida seguimos as informações disponibilizadas nessa obra e de outras que nos chegaram através de relatos orais ou (re) construídos, enquadrados por leituras de acontecimentos sociais e políticos registados na época do nosso herói e nas terras por onde andou. Foi nossa intenção evocar algumas situações relativas a este “gentil- homem” que se distinguiu pela sua coragem, audácia e ardor na arte do “jogo do pau”, na “destreza no jogo da faca” e nas suas lutas e contendas em diferentes cenários das bacias do Lis e do Tejo, na serra de Aire e mais tarde em Alvaiázere. Crê-se que tenha participado como Maioral de ranchos que levaram às terras da Borda d’Água jornaleiros e pescadores das bandas do Lis e do mar da Vieira. Uns por lá ficaram dando origem a diferentes ramos e famílias ligadas aos trabalhos rurais e à pesca do rio; outros regressaram às suas terras de origem. Através destas notas, apresentadas sob a forma de uma biografia romanesca prestamos homenagem a um parente, que conforme assinala “O Couseiro”, além da “uma corpulência ou estatura extraordinária (...) quando via alguma injustiça muito revoltante intervinha e tomava sempre parte do inocente ou mais fraco”. Esta saudação é extensiva a todos os familiares que com ele partilham o Além e aos seus descendentes dispersos pelo mundo.

Excertos da obra

Capítulo V - Os franceses (Invasões francesas)

« Os jovens da terra, com maior porte, vinham a dedicar algum tempo suplementar em ensinamentos que um dos capatazes da família Pereira, vindo dos lados das nascentes do Lis, aprendera em lições que um galego seu vizinho lhe dera sobre as técnicas de defesa e de ataque.

Chamavam-lhe o “Malha Costas” pela facilidade com que manejava as alfaias agrícolas, a sachola, a forquilha, o ancinho, o varapau.

(...)
Sabia atacar, recuar, voltar à luta e sair, manusear o cajado em rebate, em redonda, em enviesada ou arrepiada, com tanta destreza e força, que os amigos o temiam. O treino permitia-lhe destacar-se pelos sarilhos e movimentos ágeis do corpo destinados a impressionar os amigos e a lançar-se em “sarilhos reais” sempre que as circunstâncias o exigiam.

Os passos e os deslocamentos principais eram ensinados, sob o olhar atento do Sr. Costa cuja saúde ainda lhe permitia ilustrar certas posições de guarda, mas raramente as mais ousadas de parada e de pancada, as guardas rijas e as guardas em movimento ou varrimentas.

(...)
À sua maneira foi aperfeiçoando as atitudes exigidas por essa arte marcial: as guardas e os ataques; os cortes e as fintas; os deslocamentos e as manipulações que lhe saíam à maneira sempre que se concentrava a estudar o manejo do adversário, a inverter os seus golpes, a anular a força das arremetidas em proveito próprio, a cansar o inimigo, a derrubá-lo – se assim fosse necessário - quando este menos o esperava.

(...)
No entanto, armados só com varapaus, como podiam fazer frente às armas dos franceses? Só podiam vencê-los se os apanhassem à socapa, distraídos ou então caindo-lhes em cima a matar. »

Capítulo VI - O massacre da Ti Ana

« No local, o grupo de homens armados com foices, sacholas e varapaus recebeu a notícia com preocupação.

(...)
Um grupo de populares revoltados contra a presença dos agressores decide enfrentar a coluna armada que vinha do sul, sem mestre e apenas com as armas de que dispunham: as sacholas, os paus, as foices e os foicinhos. »

Capítulo VII - As sortes

« A sua destreza no manejo de armas brancas e do varapau era já reconhecido por algumas famílias que a ele recorriam quando havia alguma missão mais difícil.

(...)
Bem o quis derrubar o tal cabo-esperto que o apanhou de surpresa numa razia pelos artelhos ao que o nosso herói respondeu com um golpe de rins e uma cacetada enviesada que o deitou no chão, a sangrar e a amaldiçoar o instruendo. »

Capítulo VIII - O regresso à Ruivaqueira

« Seguiu-se a troca de insultos, o rugir do freixo dos varapaus, o pó levantado pelas andanças da luta e os chapéus pelo ar. Sem dar por isso José “varreu” o recinto à paulada, por entre o choro das mulheres e das crianças e o gemido de algum, que inadvertidamente havia sido colhido pela fúria da contenda. Depois foi a retirada do usurpador, com a vara partida, nariz a escorrer em sangue e camisa rasgada, acompanhado dos seus homens, pelo arneiro das Eiras a caminho casa.

(...)
Rendidos à sua audácia e destreza logo lhe vieram com novas propostas de trabalho. Entre elas a apresentada por um amigo do patrão, com origem no guarda-mor da casa real, era irrecusável: pedia-lhe para ir a Lisboa dar umas lições de “esgrima popular” – como lhe chamavam na corte - ou seja, de manejo do varapau, ao Príncipe D. Miguel (...)

(...)
Foi nesse local [Salvaterra de Magos] que o mestre veio a ficar durante uns dias, procedendo ao polimento das varas com que ia ensinar ao futuro monarca as regras básicas e os passes de defesa, de ataque individual e de combate em grupo. Entre eles o que o Príncipe mais apreciava eram as “varredelas” e a “enviesada”, também conhecida por ‘atirar a matar’. Era tido como um golpe fatal e se o inimigo não se resguardasse seguia direitinho dali para a vala comum...

(...)
Não as tinha escrito, mas na sua cabeça estava tudo registado:

  • Como iniciar a luta? Tinha de ser em espaço aberto e desocupado, num raio superior ao do comprimento da vara e de braços estendidos;
  • Que precaução ao manejar a vara? Bem agarrada por ambas as mãos e bem longe do corpo;
  • Como treinar? Fora do alcance de outras pessoas, proibindo a aproximação de terceiros, sobretudo pela retaguarda;
  • Como colocar os pés e o corpo em defesa e no ataque à sua esquerda ou à sua direita;
  • Como aproveitar a força do inimigo, anulando-a e ganhando poder sobre ele;
  • Como sair da luta, em caso de necessidade.

Feitas estas considerações iniciais passou depois ao exercício físico ensinando-lhe as diferentes posições: no início, a postura vertical e a postura base do jogo. Aí o corpo tinha de estar dobrado sobre o membro inferior e a vara em posição de ataque; depois, o modo de pegar a vara com as duas mãos; a seguir, os deslocamentos relativos ao avançar e ao recuar, ao entrar e ao sair da área do jogo; por fim, os deslocamentos laterais e, ainda, os sarilhos de cima e de baixo. Já depois do futuro monarca dominar estas técnicas fundamentais, foi a vez de lhe ensinar o “sarilho”, a “guarda” e a “enviesada” (...)

(...)
Mais tarde, quando D. Miguel voltou do seu exílio na Europa, o futuro monarca requisitou novamente os seus serviços, desta vez no palácio da Rainha, em Queluz, onde mantinha a sua guarda pessoal. Só que, desta vez, as muitas solicitações do Príncipe regente não lhe permitiam tempo para grandes lições, deixando-o liberto para a instrução aos seus servidores mais próximos. »

Capítulo XI - As viagens à Borda d´Água

« Foi então que um amigo do senhor de Leiria que residia na capital, sabendo que o “mestre do varapau” estava vivo, fez-lhe chegar um convite para lhe arranjar um rancho de bons trabalhadores (...) Mais ainda, precisava que ele fosse ensinar a sua arte, como o fizera já ao Príncipe Miguel, aos feitores da sua nova quinta do vale do Tejo.

(...)
Nas imediações surge-lhes por detrás de uns penedos um grupo de malfeitores, que se não fosse a arte de manejar o pau posta de imediato em prática e feito esvair em sangue um deles teria causado dissabores.

(...)
- “Sabes, na nossa terra, temos o costume de realizar pela altura das colheitas, um encontro com as trupes dos feitores das nossas casas. Este ano vamos convidar as casas mais próximas. É uma espécie de torneio do ‘Jogo do varapau’. E como sei que manejas bem a vara, quero que aprendas os jeitos cá da terra e os vás preparando para levares os outros de vencida, de acordo?”

O nosso homem nem queria convencer-se do que estava a ouvir.
Curvou-se perante o seu patrão e com voz firme, retorquiu:
- “Assim farei, Senhor”.

(...)
Contrariamente ao que se passava em muitas feiras onde as contendas populares eram resolvidas à paulada - as quais varriam por completo o chão, levantando uma nuvem de pó e gerando o alarido entre as mulheres e as crianças -, nas quintas essas brigas eram disciplinadas e enquadradas num ritual agrícola. (...) Neste caso quanto maior fosse a casa, mais e melhores jogadores tinha de ter, pois esta era uma forma de mostrar a mais-valia do exército pessoal e da quinta onde trabalhavam.

(...) estes eram acompanhados por mestres que as dirigiam levando consigo a vara de pau não só como símbolo de poder, mas uma arma de defesa.

(...)
Todos eles traziam a vara do jogo pois estava marcado, nesse dia de aniversário do Senhor Passos, um torneio com as casas senhoriais de Golegã e de Salvaterra. Feitas as apresentações e lidas as regras, os combates iniciaram-se em grupos de três, sendo que os vencedores tinham direito a disputar entre si a final. E quando os estalidos começaram a fazer-se ouvir e as faíscas começaram a irromper das pancadas certeiras e desvios dos lutadores (...) »

Capítulo XII - Entre margens

« (...) que representasse bem a casa Passos nos torneios de varapau, por altura das festas das colheitas que iam ter lugar na Golegã e em Santarém. (...) Nessas deslocações o Senhor Passos deu-lhe possibilidade de participar num torneio de jogo de pau, realizado às portas de Sintra, e onde o José e o seu companheiro de trabalho levaram de vencida o grupo do Marquês da Granja, o tal que possuía também uma quinta junto ao Tejo e que agrupava, juntamente com a dos fidalgos da Golegã, os melhores jogadores e defensores desta arte na região.

(...)
A justiça andava à sua procura por causa de umas pauladas que tinha desferido a um garotão, metediço com as raparigas do rancho (...) o Juiz toma o martelo que tinha em cima da mesa, desfere uma pancada e proclama em voz alta:
- “De hoje em diante, o réu deixa de poder andar na via pública armado de vara. Pode usar, apenas, uma bengala. E quanto à faca, que sabemos usa com destreza, queira mantê-la afastada do corpo.
Entendido?”. »

Capítulo XIV - A separação familiar e ocaso

« Desconfiando do estado em que José se encontrava, trazia-lhe um convite para ir dar umas instruções sobre o jogo do pau lá na casa, ao filho do patrão, também ele de sangue azul, que havia casado com uma descendente dos fidalgos de Alpiarça. E tendo conhecimento do parentesco que a sua família tinha com o mestre do “varapau” pedira-lhe para vir ali, prestar esse serviço. (...) Para além das aulas que o Barão queria que José desse ao filho, sobre o jogo do pau, pedia-lhe também para dar uma ajuda na organização da casa que acabara de herdar. A instrução ao jovem nas artes marciais era absolutamente necessária para sua defesa pessoal e para afirmar o seu estatuto quando fosse chamado a intervir nalgum jogo familiar que reunisse as casas nobres da região.

(...)
À data o manejo da vara deixara de ser, apenas, uma técnica de defesa, para fazer parte do entretenimento semanal que os homens das aldeias usavam para evidenciar os seus dotes de força e audácia, em torneios que preenchiam os arraiais de algumas festividades.

Entre os seus praticantes contavam-se os proprietários rurais e os negociantes, (...) Aqueles distinguiam-se pelo seu estatuto e vestimenta - chapéu, camisa de linho, jaqueta, cinta ou faixa de pano sobre as calças domingueiras e as botas ensebadas - e dotes de manejo, com regras próprias, do lodão transformado em cajado de defesa e de distração. Assim foi acontecendo até que alguns infortúnios mais severos levaram à sua proibição, sobretudo por parte de Curas mais zelosos do bem-estar dos seus fregueses. Foi aí que o palco escolhido passou dos adros das Igrejas e capelas para o chão das feiras, que à época constituíam um verdadeiro chamariz da população aos locais de compra e de venda de bens por parte das populações rurais, dos comerciantes que faziam da feira o seu modo de vida e de outros compradores da cidade mais próxima.

(...)
A viagem de regresso à serra, as aulas do jogo do pau que deu lá na quinta ao filho do fidalgo e aos colegas que o tinham acompanhado, todos eles alunos da Universidade de Coimbra, deram novo ânimo a José.


José enfrenta a sombra da morte com a mesma tenacidade que outrora manejara as varas de freixo, de marmeleiro e sobretudo de lodão, mas agora numa situação de inferioridade física e mental. »

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