Artigo: A arte de Pedro Ferreira faz escola e discipulos

Fonte: Jogo do Pau Português
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Sobre

  • Relevância: ★★★
  • Título: A arte de Pedro Ferreira faz escola e discípulos
  • Autor: Texto de João Chasqueira e fotos de Sérgio Morais
  • Publicação: Revista «Elo Associativo» nº 1 de maio 1997


Artigo

« JOGO DO PAU NO ATENEU

Mestre Pedro Ferreira tem o seu nome indissociavelmente ligado à escola de jogo do pau no Ateneu Comercial de Lisboa. Brilhante jogador desta luta desportiva, na qual os intervenientes se defrontam com varas, foi seu fundador naquela associação cultural, desportiva e recreativa onde ensinou durante muitos anos várias gerações de alunos, muitos deles, hoje, a dar aulas em outros clubes e associações. Um desses seus alunos, com quem mantinha uma relação de amizade e respeito é actualmente o representante do Ateneu para a prática da modalidade do jogo do pau. Chama-se Manuel Joaquim Monteiro. A nossa revista esteve à conversa com ele e com a drª Maria Adelina, filha de Pedro Ferreira. Factos e recordações encheram hora e meia de conversa durante a qual ficámos a conhecer melhor a personalidade e a obra de um homem que soube inovar e manter viva a arte e mestria de um jogo tipicamente português.

Pedro Manuel Rodrigues Ferreira nasceu a 26 de Março de 1915 na freguesia de Alvaredo, concelho de Melgaço. Nascido no seio de uma família abastada no meio rural, essa condição irá determinar em certa medida a sua vida futura. Filho mais novo, tem oito anos quando se dá o falecimento do pai. Essa circunstância, como nos explica sua filha Maria Adelina, virá a introduzir profundas alterações no quadro familiar. A mãe, que nunca se ocupara de qualquer aspecto relacionado com a gestão dos negócios, acaba por entregar a administração da casa e das propriedades a pessoas próximas e a alguns familiares, que, abusando da confiança neles depositada e adoptando formas indevidas de apropriação, iniciam um percurso de alienação do património e decadência sem retorno. Antes, porém, chega a frequentar o colégio de S. Bartolomeu dos Mártires, em Braga, disfrutando simultaneamente das condições de desafogo económico próprias de uma família da burguesia rural. Por pouco tempo, pois com a morte do pai e com as alterações produzidas, acaba por ser o único irmão impossibilitado de prosseguir os estudos. Obrigado a ficar na aldeia, sem qualquer ocupação, pouco virado para aprender um ofício, dedica-se aquilo que mais gosta: nadar (aprendeu sozinho), escalar montes e sobretudo andar pela romarias onde, na altura, é prática corrente o jogo do pau.

ESPÍRITO REBELDE

É então que aprende a dominar as técnicas deste jogo, para o qual revela especiais aptidões. Como todos os outros homens e rapazes, da sua prática faz um quase obrigatório instrumento de defesa. O que nele até vem mesmo a calhar, como observa Maria Adelina, dadas as características do seu temperamento rebelde e activo, sempre pronto para a malandrice e a brincadeira. Revelador dessa postura inconformada é o episódio em que se viu envolvido aos 16 anos, numa feira de gado onde se deslocou com sua mãe para proceder à venda de uma junta de bois. Abordado por um negociante, resolveu este, depois de mirar os animais, aguilhar com um pau no traseiro do dito, como parece que era hábito, para ver a sua reacção. Só que o impulso do gesto terá excedido o razoável e, inesperadamente, o boi dá um salto para cima da mãe do jovem Pedro. Interpelado o negociante, a quem perguntou se vira bem o que fizera, logo este, constatando que era um miúdo, responde a Pedro Ferreira de forma ríspida e provocatória, chegando mesmo à ameaça física. Estava armado o baile. O negociante puxa do pau para lhe bater. Azar o seu. Enquanto o diabo esfrega um olho, recorda a sua filha, o jovem Pedro Ferreira, fazendo também uso do seu pau, opera aquilo que na gíria é designado por "passagem", atingindo-o num joelho, golpe que em fracções de segundo o faz estatelar, redondo, no chão.

CONTRA AS INJUSTIÇAS

É aos 20 anos que a sua vida sofre uma viragem, com a ida para a tropa, em Lisboa. Por lá fica, em casa de uma irmã, iniciando a procura do seu primeiro emprego. Durante dez anos salta de patrão em patrão, ocupando-se nas mais variadas actividades. A falta de habilitações e os hábitos que trazia (nunca ter estado a mando de ninguém, a par da vida desafogada em casa materna), levam-no a ter dificuldades em reconhecer hierarquias e chefias, impedindo-o, desse modo, de estabilizar profissionalmente.

Durante aproximadamente uma década vive um período que o marcará decisivamente na sua consciência social e na sua visão do mundo. São anos em que convive de perto com vários estratos sociais, designadamente com o operariado de Alcântara, em Lisboa, facto que o viria a influenciar sobremaneira.

Ele próprio, nesses anos, passa pelas mais variadas experiências profissionais. De estivador a sapateiro, de ajudante de motorista a trabalhador de obras na Carris. São tempos em que, sobretudo, sedimenta no seu carácter uma força indomável contra as injustiças. Daí a ter problemas com as autoridades foi um passo.

E assim se mantém até aos 30 anos, altura em que inicia aquela que viria a ser uma brilhante carreira de instrutor de condução automóvel. Sem estar na dependência de ninguém, aplica então todas as suas qualidade de pedagogo e pelas suas aulas chegam a passar três gerações da mesma família. Uma carreira que se prolonga até aos 78 anos, altura em que - não por vontade própria — se vê na contingência, por força dos serviços de saúde, de aceitar a reforma.

PAIXÃO PELO DESPORTO

Mas é exactamente quando estabiliza profissionalmente, por volta dos 31 anos, que Pedro Ferreira retoma a prática do jogo do pau. Começa no Lisboa Ginásio — é já o seu discípulo Manuel Monteiro que nos relata —, onde se inscreve, ocultando os seus conhecimentos na modalidade. Virá a praticar também numa colectividade da Mouraria e mais tarde no Ginásio Clube. O seu dinamismo e espírito desportista impelem-no, no entanto, para outras actividades. Qualidades, revela-as, ainda, no judo, no karate, na natação e na capoeira.

É todavia para o jogo do pau que vai verdadeiramente toda a sua paixão. Uma paixão que passa pela sua divulgação, das mais variadas formas. Participa em revistas, faz cinema, vídeos e tudo o mais que sirva para levar ao grande público o seu desporto favorito. Uma prática que tem as suas origens no Norte do País — como nos diz Manuel Monteiro, a gente do Norte sempre teve, reconhecidamente, mais facilidade em manobrar o jogo do pau, por razões que não serão alheias à actividade do campo, cujo dia-a-dia é passado com uma ferramenta (enxada) que lhes garante destreza manual — e que vai chegando a Lisboa à medida que novos fluxos migratórios tomam o rumo da capital, com os homens do Norte a trazerem tudo o que tinham aprendido sobre o jogo e a manterem, acima de tudo, o espírito de jogadores. Na altura, passa a praticar-se em quintais, clubes, colectivida-des e associações culturais.

A «ESCOLA-MÃE» DO ATENEU

Fundado em 1880 por um grupo de empregados de comércio, que rapidamente viu crescer o seu número de associados, o Ateneu Comercial de Lisboa inscreveu cedo na sua acção a prática de várias modalidades desportivas, entre as quais o jogo do pau. Arte marcial tradicional portuguesa, esta modalidade tem por conseguinte uma longa tradição no Ateneu, onde se formaram destacados jogadores, lodo a seguir à sua fundação, como foi o caso de José Maria da Silveira (o «Saloio») que, entre muitos outros alunos, ensinou o Rei D. Carlos, deixando vários mestres.

Modalidade de desporto, de cultura, de educação e de exibição, o jogo do pau tem sabido prestigiar em vários pontos do País e no estrangeiro o Ateneu Comercial de Lisboa, instituição que é hoje reconhecida como a «escola--mãe» desta arte marcial.

UMA NOVA ESCOLA

Tendo-se destacado como jogador no Ateneu Comercial de Lisboa, onde tem como mestre António Nunes Caçador, Pedro Ferreira é, a pedido daquele, por motivo de doença, nomeado contramestre. A partir de então inicia um processo de inovação, que se reflecte não apenas numa nova técnica de jogo como também numa modificação das demonstrações feitas nos saraus do Ateneu e em festas para as quais eram convidados a exibir-se.

A sua nova técnica apreendera-a Pedro Ferreira com um mestre chamado Júlio Hopffer, que, por sua vez, a assimilara de seu pai. Mas não foi apenas a este mestre que Pedro Ferreira foi buscar as "passagens" que vieram dar um novo rumo ao jogo do pau, embelezando-o e dando simultaneamente uma outra vida à escola do Ateneu. Lembradas por Manuel Monteiro foram as viagens de Mestre Ferreira por terras nortenhas, no decorrer das quais procedeu a um intenso trabalho de pesquisa e investigação junto de outros praticantes do jogo do pau, o que lhe permitiu integrar conhecimentos sobre o que de melhor então se fazia.

É a partir desse momento que a sua escola passa a ser apresentada em público com todos os componentes da classe. Toda a técnica era apresentada como se se tratasse de uma aula. A partir da apresentação, jogavam primeiro os mais fracos, seguindo-se os mais fortes, e, por fim, jogava o mestre com o melhor aluno, evidenciando todas as capacidades, beleza e competitivida-de do jogo, também na sua dimensão de arte marcial.

Com um crescente número de adeptos, sobretudo no meio universitário, rapidamente se desenvolve a ideia de constituir uma associação. Mestre Ferreira e os jogadores dinamizam o trabalho nesse sentido e criam, em 1977, a Associação Portuguesa do Jogo do Pau, congregando todas as escolas existentes no País.

Com uma vida inteira dedicada ao ensino do jogo do pau, Mestre Pedro Ferreira manteve-se até praticamente ao final da vida como um dos seus mais exímios praticantes. Isso mesmo esteve patente na homenagem que lhe prestaram por ocasião dos seus 80 anos. Na presença do então Presidente da República, Ramalho Eanes, fez uma apresentação onde evidenciou as suas enormes qualidades. »

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